"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

domingo, 20 de maio de 2012

Sutilezas Literárias # 010 - Oscar Wilde

(...)
"Exerce realmente má influência, lorde Henry? - perguntou o rapaz,
momentos depois. - Tão má como diz Basil?
- Boa influência é coisa que não existe, senhor Gray. Toda
influência é imoral... imoral, do ponto de vista científico.
- Porquê?
- Porque influenciar uma pessoa é emprestar-lhe a nossa alma. Essa
pessoa deixa de ter idéias próprias, de vibras com as suas paixões
naturais. As suas qualidades não são verdadeiras. Os seus pecados,
se é que existe o que se chama pecado, vêm-lhe de outrem. Essa
 pessoa torna-se o eco da música de outra pessoa, intérprete de um
 papel que não foi escrito para ela. A finalidade da vida é para
cada um de nós o aperfeiçoamento, a realização plena da nossa
 personalidade. Hoje, cada qual tem medo de si próprio; esquece o
maior dos deveres: o dever que tem consigo mesmo. Naturalmente,
o homem é caridoso. Dá de comer ao faminto, veste o maltrapilho.
Mas a sua alma é que sofre fome e anda nua. A coragem abandonou
a nossa raça. Talvez nunca a tenhamos tido. O temor da sociedade,
que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo da religião...
eis as duas coisas que nos governam. Contudo...
- Volte um pouco mais a cabeça para a direita, Dorian; seja bonzinho
 - atalhou o pintor, absorvido no trabalho, percebendo só que o rosto
do modelo assumira uma expressão nova, uma expressão
que ele não conhecia.
- Contudo - continuou lorde Henry, com a sua voz grave e
melodiosa, abanando curiosamente a mão, em um gesto tão seu,
que já tinha no tempo de colegial -, sou de parecer que se o homem
vivesse plena e totalmente a sua vida, desse forma a todo sentimento,
expressão a toda idéia, realidade a todo devaneio... creio que o mundo
 receberia um novo impulso eufórico, um impulso de alegria que nos faria
 esquecer todos os males do medievalismo e voltar aos ideais helênicos...
 talvez a algo mais belo e mais rico do que o próprio ideal helênico.
 Mas o mais valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo.
A mutilação do selvagem subsiste tragicamente na renúncia que nos
estraga a vida. Somos punidos pelo que enjeitamos. Todo impulso que
nos empenhamos em sufocar incuba no nosso espírito e nos envenena.
Peque o corpo uma vez, e estará livre do pecado, porque a ação tem um
dom purificador. Nada restará então, salvo a lembrança de um prazer; ou
 a volúpia de um arrependimento. A única maneira de se livrar de uma
tentação é ceder-lhe. Resistamo-lhe, e a nossa alma adoecerá de desejo
do que proibimos a nós mesmos, do que as suas leis monstruosas
tornaram monstruoso e ilegítimo. Tem-se dito que os grande
acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro.
Também é no cérebro, e só nele, que ocorrem os grandes pecados
do mundo. O senhor mesmo, senhor Gray, com a sua mocidade
cor-de-rosa, a sua adolecência de rosa e leite, teve paixões que o
assustaram, pensamentos que o encheram de terror; teve, acordando
ou dormindo, sonhos cuja simples lembrança o faz corar de vergonha...
- Basta! - balbuciou Dorian Gray. - Basta! O senhor espanta-me.
 Há resposta às suas palavras; eu, porém, não as encontro. Não fale.
Deixe-me pensar. Ou melhor: deixe-me ver se consigo não pensar".
(...)

Oscar Wilde, em O Retrato de Dorian Gray, Capítulo II.

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