"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sutilezas Literárias # 017 - Albert Camus

(...)

"Todo o problema, repito-o, estava em matar o tempo. Por último,

acabei por já não me massar, a partir do instante em que aprendi a

recordar. Punha-me às vezes a pensar no meu quarto e, em

imaginação, partia de um canto e dava a volta ao quarto,
enumerando mentalmente tudo o que encontrava pelo caminho. 
Ao princípio, isto durava pouco. Mas, cada vez que recomeçava, ia
durando mais, pois lembrava-me de cada móvel e, para cada móvel,
de cada objeto que lá havia e, para cada objeto, de todos os
pormenores e, para os próprios pormenores, de uma incrustação, de
uma racha, de um bordo quebrado, da cor que tinham, ou da
qualidade de que eram feitos. Tentava ao mesmo tempo não perder
o fio a este inventário e fazer uma enumeração completa. De tal
forma que, ao fim de algumas semanas, passava horas, só a
catalogar tudo o que havia no meu quarto. Assim, quanto mais
pensava, mais coisas esquecidas ia tirando da memória. 
Compreendi então que um homem que houvesse vivido um único 
dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão. 
Teria recordações suficientes para não se massar. 
De certo modo, isto era uma vantagem.
Havia também o sono. No começo dormia mal de noite e de
dia, nunca. Pouco a pouco, as noites melhoraram e consegui
também dormir de dia. Posso dizer que, nos últimos meses,
dormia dezesseis a dezoito horas por dia. Restavam-me seis horas
a matar, com as refeições, as necessidades naturais, as recordações
e a história do Tchecoslovaco. Entre a enxerga e as tábuas da cama, 
eu encontrara, com efeito, um velho bocado de jornal, amarelecido e 
transparente, quase colado ao pano.
Relatava um acontecimento cujo início faltava, mas que devia ter 
sucedido na Tchecoslováquia. Um homem partira de
uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico,
 regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com
 a irmã, tinham uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma
 surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar 
a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a ideia
 de se instalar num quarto como hóspede.  Mostrara o dinheiro 
que trazia.  De  noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado 
à martelada e  atirado  o corpo ao rio. No dia seguinte de manhã,
 a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, 
 identidade  do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se a 
um poço.  Devo ter lido esta história milhares de vezes. 
Por um lado, era  inverossímil. Por outro lado, era natural. 
De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto 
a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas.
E assim, com as horas de sono, as recordações, a leitura do meu
jornal e a alternância da luz e da sombra, o tempo foi passando.
Tinha lido que na prisão se perde a noção do tempo. Mas
para mim, isto não fazia sentido. Não compreendera ainda até
que ponto os dias podiam ser ao mesmo tempo curtos e longos.
Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos, 
que acabavam por se sobrepor uns aos outros e por perder o nome. 
As palavras ontem ou amanhã eram as únicas que conservavam
sentido". (...)

Albert Camus, em "O Estrangeiro" - (Segunda Parte)
Tradução: Antônio Quadros

Nenhum comentário:

Postar um comentário