"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês
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segunda-feira, 13 de maio de 2019

Sutilezas Literárias # 063 - Lilia Moritz Schawrcz

"No entanto, uma tosse insistente começava a acompanhar d. Pedro: era uma pneumonia que lhe tomava o pulmão esquerdo. O ex-imperador do Brasil passou o aniversário de 66 anos confinado em seu quarto, com os amigos, a filha e os netos, que não dissimulavam a preocupação. No dia 3 de dezembro chegaram os príncipes Pedro Augusto e Augusto de Saxe para as últimas

despedidas. A meia-noite e meia do dia 5 de dezembro de 1891, o antigo monarca falecia e a princesa Isabel tornava-se a sucessora legal do Trono do Império do Brasil: d. Pedro morrera sem abdicar de seu cargo.

O atestado de óbito foi lavrado por Mota Maia, Charcot e Bouchard, que apresentaram como causa da morte uma pneumonia aguda do lado esquerdo. Em meio à confusão de seu quarto, entre crucifixos e livros de anotações, jazia o imperador, cuja barba, tantas vezes comentada, aparentava estar ainda mais branca, quase artificial em razão da pequena porção de cola que recebera para ficar mais lisa e dura sobre o peito.

Ritual derradeiro, na morte os símbolos ganham papel destacado. Vestiram-no imperialmente, pondo-lhe o colar da Ordem da Rosa sob a barba e, perto do crucifixo de prata, enviado pelo papa, a Ordem do Cruzeiro do Sul, que ele parecia tanto estimar. Duas bandeiras brasileiras foram utilizadas para cobrir as compridas pernas do morto. Como que por acaso, por ideia do fotógrafo Nadar — que buscava um melhor ângulo —, um livro grosso foi colocado debaixo da cabeça do imperador, para mantê-la elevada: pela última vez, e dessa feita como uma feliz coincidência, os livros compunham a imagem de d. Pedro. Por fim, o conde D’Eu completou a cena: encontrou um pacote lacrado que

continha terra trazida do Brasil a pedido do monarca. Sobre ele estava escrito pelo próprio punho de d. Pedro: “É terra de meu país; desejo que seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha pátria”. O ex-monarca seguia à risca o costume oriental de levar para o exílio um punhado de terra da pátria. Diz a tradição que “o galho não esquece o tronco e que a areia faz parte do areai”. De manhã, um grupo de brasileiros residentes em Paris deixou no hotel dois ramos — um de fumo e outro de café. Novamente o ritual e o teatro se confundem com a vida. A imagem do imperador condecorado com elementos nacionais — a terra brasileira, o céu do Brasil representado pelo Cruzeiro do Sul,

os ramos de fumo e de café que saem da casaca e se juntam ao féretro — ganha autonomia no imaginário.

Para desconforto do governo brasileiro, d. Pedro recebeu na morte o tratamento e as honras de chefe de Estado; o então presidente francês, Sadi Carnot, mandou um ajudante-de-ordens ao Hotel Bedford para apresentar pêsames. O ritual em Paris duraria três dias e depois o corpo seguiria para Portugal, onde o pousariam ao lado do de Teresa Cristina. Na morte o imperador deposto perde lugar para um rei mistificado que nesse momento parece recuperar o espaço de uma monarquia imaginária em que

a figura física não tem quase nenhuma relevância. Nesse caso, “o rei morto é cada vez mais rei”. O rei exilado é enterrado como imperador brasileiro, adornado com os símbolos de sua terra. O antigo abandono se converte em mais um grande ritual, como se d. Pedro fizesse jus ao ditado: “Rei que é rei, jamais perde a realeza”.


Lilia Moritz Schwarcz , em "As Barbas do Imperador" – pp. 489 e 490 – Editora Companhia das Letras

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Sutilezas Literárias # 062 - Machado de Assis

CAPÍTULO 29
O IMPERADOR

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma ideia fantástica, a ideia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta ideia a Capitu. “Sua Majestade pedindo, mamãe cede”, pensei comigo.

Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava as janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança:

“O Imperador entrou em casa de Dona Glória! Que será? Que não será?” A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, - não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,- pedia a minha mãe que me não fizesse padre, - e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.

- A medicina, por que lhe não manda ensinar medicina?

- Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade..

- Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias; combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira: mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?

- Mamãe querendo.

- Quero, meu filho. Sua Majestade manda.

Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro: o Imperador entrava no coche. inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: “A medicina, a nossa Escola.” E o coche partia entre invejas e agradecimentos.

Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

Machado de Assis, em "Dom Casmurro" - 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Sutilezas Literárias # 061 - Laurentino Gomes

(..) Na conversa, todos se manifestaram de acordo com o uso das armas para depor a Monarquia. Combinou-se um plano pelo qual os participantes ficariam encarregados de agitar os ânimos nos quartéis, estocar armamento e munição e traçar em detalhes o golpe a ser desfechado nos dias seguintes. A certa altura, porém, Benjamin Constant mostrou-se preocupado com o destino do imperador Pedro II.

— O que devemos fazer do nosso imperador? — perguntou.

Fez-se um minuto de silêncio, quebrado pelo alferes Joaquim Inácio:

— Exila-se — propôs.

— Mas se resistir? — insistiu Benjamin.

— Fuzila-se! — sentenciou Joaquim Inácio.

Benjamin assustou-se com tamanho sangue-frio:

— Oh, o senhor é sanguinário! Ao contrário, devemos rodeá-lo de todas as garantias e considerações, porque é um nosso patrício muito digno.

Por uma ironia da história, o “sanguinário” Joaquim Inácio Cardoso, então com 29 anos, viria a ser avô de um futuro presidente da República, o manso Fernando Henrique Cardoso. Para fortuna de Pedro II, no dia 15 de novembro haveria de prevalecer a posição de Benjamin. Em vez de fuzilado, como queria Joaquim Inácio, o imperador seria despachado para o exílio.

Até aquele momento, a conspiração tinha sido essencialmente militar, mas entre os republicanos civis a agitação também era grande. Artigos nos jornais assinados, entre outros, pelo advogado baiano Rui Barbosa de Oliveira e pelo jornalista fluminense Quintino Antônio Ferreira de Sousa Bocaiúva pregavam abertamente a República, objeto de concorridas e ruidosas manifestações promovidas pelo advogado Antônio da Silva Jardim e pelo médico e jornalista José Lopes da Silva Trovão. Alguns incitavam os militares contra o governo imperial, como era o caso dos textos incendiários do gaúcho Júlio Prates de Castilhos no jornal A Federação, de Porto Alegre, mas raros eram os civis que tinham conhecimento da real movimentação nos quartéis. Eles só foram informados disso no começo de novembro. Era esse o conteúdo da mensagem que Medeiros e Albuquerque levara a São Paulo naquela semana.

Dois dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, Francisco Glicério foi levado por Aristides Lobo à presença do marechal alagoano Manoel Deodoro da Fonseca, em reunião da qual também participaram Quintino Bocaiúva, Rui Barbosa, Benjamin Constant, o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro e dois oficiais da Marinha, o almirante Eduardo Wandenkolk e o capitão de fragata

Frederico Guilherme Lorena. Aos 62 anos, com a vida marcada por atos heroicos na Guerra do Paraguai e sucessivos desentendimentos com as autoridades imperiais, Deodoro era o depositário de todas as esperanças dos conspiradores republicanos.

O problema é que, àquela altura, o marechal estava gravemente enfermo. Passava o tempo todo na cama. Temia-se que morresse a qualquer momento. Glicério ficou impressionado com seu aspecto ao vê-lo pela primeira vez às voltas com uma crise de dispneia, falta crônica de ar produzida por arteriosclerose. Atirado sobre o sofá, envolto em um roupão, o marechal nem sequer reunia condições para vestir a farda. O peito arfava, e ele mal conseguia falar. O quadro era tão desalentador que, pelos cálculos do advogado campineiro,

Deodoro não sobreviveria mais do que algumas horas. E, nesse caso, as chances de sucesso da revolução seriam mínimas. Além de muito doente, o marechal até aquele momento relutava em assumir a liderança do movimento contra o governo imperial. Menos animado ainda estava em relação à hipótese de proclamar a República.

Por essas razões, o encontro na noite de 11 de novembro, segunda-feira, apesar de rápido, foi tenso. Benjamin Constant afirmou que não bastava derrubar o ministério sem trocar o regime. A preservação da Monarquia, segundo ele, serviria apenas para agravar os problemas. Era preciso fazer a República. “Está provado que a Monarquia no Brasil é incompatível com um regime de liberdade política”, argumentou Benjamin. “Para que a intervenção do Exército se legitime aos olhos da nação e pelo julgamento de nossas próprias consciências, é necessário que a sua ação se dirija à destruição da Monarquia e à proclamação da República, recolhendo-se em seguida aos seus quartéis e entregando o governo ao poder civil. (...)

Laurentino Gomes em 1989, páginas 41 e 42. Editora Globo

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Sutilezas Literárias # 060 - Laurentino Gomes

(...)
A montaria usada por D. Pedro nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito d Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma “bela besta baia”.
Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e esburacados. Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente.

O dia 7 de setembro amanheceu claro e luminoso nos arredores de São Paulo. O litoral paulista, porém, estava frio, úmido e tomado pelo nevoeiro. Faltava ainda uma hora para o nascer do sol quando D. Pedro saiu de Santos, cidadezinha de 4.781 habitantes, onde passara o dia anterior inspecionando as seis fortalezas que guarneciam as entradas pelo mar e visitando a família do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Sua comitiva era relativamente modesta para a importância da jornada que iria empreender. Além da guarda de honra, organizada nos dias anteriores de forma improvisada nas cidades do vale do Paraíba, enquanto viajava do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhavam D. Pedro o coronel Marcondes, o padre Belchior, o secretário itinerante Luís Saldanha da Gama, futuro marquês de Taubaté, o ajudante Francisco Gomes da Silva e os criados particulares João Carlota e João Carvalho.

Eram todos muito jovens, a começar pelo próprio D. Pedro, que completaria 24 anos um mês depois, no dia 12 de outubro. Padre Belchior, com a mesma idade, nascido em Diamantina, era vigário da cidade mineira de Pitangui, maçom e sobrinho de José Bonifácio. Virou testemunha do Grito do Ipiranga por acaso. Eleito deputado por Minas Gerais para as cortes constituintes portuguesas, convocadas no ano anterior, deveria estar em Lisboa participando dos debates. A delegação mineira, porém, foi a única a permanecer no Brasil em virtude das divergências internas e da incerteza a respeito do que se passava em Portugal. Saldanha da Gama, de 21 anos, era, além de secretário itinerante, camareiro e estribeiro mor do príncipe. Tinha o privilégio de ajudá-lo a se vestir e a montar a cavalo. Com 29 anos, Francisco Gomes da Silva, também chamado de “O Chalaça” — palavra que significa zombeteiro, gozador ou piadista —, acumulava as funções de “amigo, secretário, recadista e alcoviteiro” de D. Pedro, segundo o historiador Octávio Tarquínio de Sousa.

Ou seja, era um faz-tudo, encarregado de arranjar mulheres para o príncipe, proteger seus negócios e segredos pessoais e defendê-lo em qualquer circunstância, por mais difícil e escusa que fosse. Marcondes, o mais velho de todos, tinha 42 anos. Nas primeiras duas horas, ainda sob a luz difusa do amanhecer, a comitiva percorreu de barco os canais e rios de água escura dos manguezais entre Santos e o porto fluvial de Cubatão, vilarejo com menos de duzentos habitantes ao pé da serra do Mar. Nesse local, D. Pedro encontrou os animais selados e o restante da guarda que o acompanharia até São Paulo. A subida da serra, porém, teve de ser retardada.

Prostrado pelos problemas intestinais, o príncipe refugiou-se na modesta estalagem situada à beira do porto. Maria do Couto, responsável pelo estabelecimento, preparou-lhe um chá de folha de goiabeira, remédio ancestral usado no Brasil contra diarreia. (...)

Laurentino Gomes, em "1822" - Editora Nova Fronteira.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Sutilezas Literárias # 059 - Laurentino Gomes

Em 1801, com a Europa ocupada por Napoleão Bonaparte, esse antigo plano ganhou senso de urgência. Nesse ano, Portugal foi invadido e derrotado por tropas espanholas apoiadas pela França num episódio conhecido como “A Guerra das Laranjas”. Assustado com a fragilidade do reino D. Pedro de Almeida Portugal, terceiro marquês de Alorna escreveu a seguinte recomendação ao príncipe regente D. João: “Vossa Alteza Real tem um grande império no Brasil. [...] É preciso que mande armar com toda a pressa todos os seus navios de guerra e todos os de transporte que se acharem na Praça de Lisboa — e que meta neles a princesa, os seus filhos e os seus tesouros”. Dois anos depois, em 1803, o então chefe do Tesouro Real, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, fez ao príncipe regente D. João um relatório da situação política na Europa. Na sua avaliação, o futuro da monarquia portuguesa corria perigo. Seria impossível manter por  muito tempo a política de neutralidade entre Inglaterra e França.

A solução? Ir embora para o Brasil.

“Portugal não é a melhor parte da monarquia, nem a mais essencial”, escreveu D. Rodrigo. “Depois de devastado por uma longa e sanguinolenta guerra, ainda resta ao seu Soberano, e aos seus povos, irem criar um poderoso império no Brasil.” O novo império americano poderia servir de alicerce para que, mais tarde, D. João pudesse recuperar “tudo que tinha perdido na Europa” e ainda punir o “cruel inimigo”. Segundo D. Rodrigo, “quaisquer que sejam os perigos que acompanhem uma tão nobre e resoluta determinação, são sempre muito inferiores aos que certamente hão de seguir-se à entrada dos franceses nos portos do Reino”.8 A proposta de D. Rodrigo foi rejeitada em 1803, mas quatro anos mais tarde, com as tropas de Napoleão na fronteira, o extraordinário plano de mudança foi colocado em ação. A corte portuguesa estava, finalmente, a caminho do Brasil.

A existência de tantos planos, e tão antigos, explica por que a mudança da corte para o Brasil deu certo em 1807. Foi uma fuga, mas não tão apressada nem tão improvisada como geralmente se imagina. A decisão já havia sido tomada e analisada diversas vezes por diferentes reis, ministros e conselheiros ao longo de quase três séculos. “De outra forma não se explica que tivesse havido tempo, numa terra clássica da imprevidência e morosidade, para depois do anúncio da entrada das tropas francesas no território nacional, embarcar [...] uma corte inteira, com suas alfaias, baixelas, quadros, livros e jóias”, observou o historiador Oliveira Lima.9

Os meses que antecederam a partida foram tensos e agitados. Em 1807, dois grupos tentavam influenciar as decisões do indeciso príncipe regente. O “partido francês”, liderado pelo ministro das Relações Exteriores, Antônio Araújo de Azevedo, primeiro conde da Barca, dizia-se favorável a uma composição com Napoleão e seus aliados espanhóis. O “partido inglês” que acabaria triunfando, tinha como seu principal defensor D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Afilhado do marquês de Pombal, ministro dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo era um estadista com visão de longo prazo. Tinha planos ambiciosos em relação ao Brasil. Achava que o futuro e a sobrevivência da monarquia portuguesa dependiam de sua colônia americana. Em 1790, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros, havia se aproximado da elite brasileira e patrocinado a ida de estudantes para a Universidade de Coimbra, então o principal centro de estudos do império português. Entre esses estudantes estava José Bonifácio de Andrada e Silva, o futuro Patriarca da Independência brasileira. (...)

Laurentino Gomes, em "1808" - Editora Planeta

quinta-feira, 16 de março de 2017

Sutilezas Literárias # 058 - John Steinbeck

(...)
Kino hesitou um momento. Aquele médico não era da sua raça. Era de uma raça que havia quase quatrocentos anos batia, esfomeava, roubava e desprezava a raça de Kino, apavorando-o também de tal modo que era humildemente que o indígena chegava àquela porta. E, como sempre que se aproximava de alguém daquela raça, Kino sentia ao mesmo tempo fraqueza, medo e cólera. A cólera e o terror se juntavam. Podia com mais facilidade matar o médico do que falar com ele, porque todos os homens da raça do médico falavam com todos os homens da raça de Kino como se fossem simples animais. E, quando Kino levantou a mão direita para bater com a argola de ferro no portão, a raiva cresceu dentro dele, a música violenta do inimigo lhe martelou os ouvidos e os lábios se apertaram contra os dentes — mas com a mão esquerda tirou o chapéu. A argola de ferro da aldrava bateu no portão. Kino tirou o chapéu e ficou esperando.

Coyotito gemeu um pouco nos braços de Juana e ela falou suavemente com ele. A gente do cortejo chegou mais perto para melhor ver e ouvir. Um momento depois, o grande portão se abriu alguns centímetros. Kino pôde ver a verde frescura do jardim e a água que caía de uma fonte através do portão entreaberto. O homem que olhava para ele era da sua raça. Kino falou com ele na língua antiga.

—O menino — o primeiro filho — foi envenenado pelo escorpião

— disse Kino. — Precisa do saber do curador.

O portão se fechou um pouco e o criado não quis falar na velha língua.

—Um momento — disse ele. — Vou falar pessoalmente.

Em seguida, fechou o portão e passou o ferrolho. O sol ofuscante lançava sobre o muro branco as compactas sombras pretas do povo. (...)

John Steinbeck, em "A Pérola" (The Pearl) - Editora Best Bolso / Record. Tradução: A.B. Pinheiro de Lemos

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Sutilezas Literárias # 057 - John Steinbeck

(...) Diante do Palace, havia um tronco grande, em que Mack e os rapazes estavam sentados, aproveitando o sol da manhã, Olhavam lá para baixo, na direção do laboratório Doc disse:

— Olhe só para eles. Acho que são os verdadeiros filósofos. Mack e os rapazes sabem tudo o que já aconteceu no mundo e provavelmente tudo o que acontecera. Creio que sobrevivem neste mundo em particular melhor do que as outras pessoas. Mostram-se relaxados numa época em que as pessoas se consomem de ambição, nervosismo e cobiça. Todos os nossos homens supostamente bem sucedidos são doentes, com estômagos ruins e almas piores. Mas Mack e os rapazes são saudáveis e extremamente puros. Podem fazer tudo o que querem. Podem satisfazer seus apetites sem os chamarem de qualquer outra coisa.

O discurso deixou a garganta de Doc tão ressequida que ele esvaziou toda a cerveja que tinha no copo. Sacudiu dois dedos no ar e sorriu, comentando:

— Não há nada como o primeiro gosto de cerveja Richard Frost declarou:

— Acho que eles são iguais a todos os demais. A única diferença é que não têm dinheiro.

— Mas poderiam ter. Sempre poderiam estragar suas vidas para ganhar dinheiro. Mack possui qualidades de gênio. São todos muito espertos, quando querem alguma coisa. Mas conhecem bem demais a natureza das coisas para querê-las desesperadamente.
Se Doc soubesse da tristeza imensa de Mack e dos rapazes não teria feito a declaração seguinte. Mas ninguém lhe falara da pressão social que estava sendo exercida contra os moradores do Palace.

Ele despejou cerveja em seu copo lentamente, enquanto falava:

— Acho que posso dar-lhe uma prova do que estou dizendo. Está vendo como eles estão sentados de frente para cá? Dentro de meia hora, a Parada do Quatro de Julho vai passar pela Lighthouse Avenue. Basta virarem a cabeça para poderem ver. Se levantarem, poderão assistir tudo. E se andarem dois quarteirões não muito grandes, poderão ficar à beira da rua por onde a Parada vai passar. Mas aposto quantas cervejas você quiser que eles nem mesmo vão virar a cabeça.

— Se eles não virarem, o que isso vai provar? — indagou Richard Frost.

— O que vai provar? Ora, simplesmente que eles sabem o que há no desfile. Saberão que o prefeito virá na frente, num automóvel, com faixas no capo. Depois, virá Long Bob, em seu cavalo branco, carregando a bandeira. Em seguida teremos o conselho municipal e duas companhias de soldados do Presídio, os membros de diversas organizações, como os Elks com seus guarda-chuvas roxos, os Knights Templar maçons, com penas brancas de avestruz e espadas, os Knights of Columbus católicos, com penas vermelhas de avestruz e espadas, Mack e os rapazes já sabem de tudo. A banda estará tocando. Eles já viram tudo. Não precisam olhar novamente.

— Não existe o homem que seja capaz de resistir a uma parada — afirmou Richard Frost.

— Quer dizer que aposta?

— Aposto.

Sempre me pareceu muito estranho. As coisas que admiramos nos homens, bondade e generosidade, franqueza, honestidade, compreensão e sentimento são os elementos do fracasso em nosso sistema. E as características que detestamos, astúcia, ganância, cobiça, mesquinharia e egoísmo; são os fatores do sucesso. Enquanto os homens admiram as qualidades que citei, adoram o resultado das outras características.

— Quem vai querer ser bom, se também está com fome?

— Não se trata de uma questão de fome. É algo muito diferente. A venda da alma para se conquistar o mundo é completamente voluntária e quase unânime, mas não totalmente. Por toda parte, no mundo inteiro, existem pessoas como Mack e os rapazes. Já as encontrei vendendo sorvete no México e em Aleut, no Alasca. Sabe que Mack e os rapazes queriam me oferecer uma festa e algo saiu errado. Mas a intenção deles era a de me darem uma festa. Foi o impulso que os motivou. Ei, não é a banda que está tocando?

Doc tornou a despejar cerveja nos copos e os dois se aproximaram da janela.(...)

John Steinbeck, em "A Rua das Ilusões Perdidas" - Editora Rio Gráfica - 
Tradução de: A.B. Pinheiro de Lemos

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Sutilezas Literárias # 056 - Edney Silvestre

"Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito.

Eu nunca tinha sentido aquele cheiro pungente antes, aquele cheiro que ficaria para sempre misturado ao cheiro das outras mulheres, das que conheci na intimidade, que invadiria o cheiro de outras mulheres e que para sempre me levaria de volta a ela. Aquela mistura de perfume doce, carne cortada, suor, sangue e — o mais próximo que consegui perceber, até hoje — sal. Como se sente quando próximo do mar. Como quando adere à pele. Não os grãos do sal — mas a poeira invisível e olorosa do sal em dias úmidos.

Mas eu também não conhecia o mar, naquela época, eu nunca tinha sentido o cheiro nem visto o mar, então aquele odor do corpo sobre a lama, nu, eu nunca tinha visto uma mulher nua nem sentira o cheiro de uma mulher nua assim tão próxima, quer dizer, não que ela estivesse completamente nua, mas o seio com aquele bico grande e... As coxas estavam abertas, a saia levantada, e eu vi os pelos pretos intrincados no alto delas, das coxas, onde as coxas longas se encontravam, e dali exalava, não, não dali, dela toda, aquele odor de corpo de mulher misturado ao sangue e eu acho que tinha se cagado, acho que tinha se borrado, como hoje eu sei que nos acontece a todos, na hora que a vida abandona nosso corpo e ele todo se relaxa, e o esfíncter se abre e... Essa também era uma palavra que eu nunca tinha ouvido. Nem lido. Esfíncter. Eu tinha doze anos e palavras como essa não eram ditas na minha casa. A gente não conhecia palavras assim.

Ela, ali, morta. Nua. Quase nua.
Eu sabia que ela estava morta. Nós dois sabíamos. A pele estava fria, a pele do braço, que foi a primeira que a gente tocou. A do rosto, tão... Pálida. Era isso, assim, pálida?

Era. Estava. Com a boca aberta. Entreaberta. Como se tivesse começado a sorrir. Os dentes grandes, alvíssimos, apenas uma parte deles, brilhando entre os lábios grossos... Inchados? Tinham batido nela? O rosto tinha outras marcas? Tinha. Mas era nos lábios que o sangue... Acho que eu toquei os lábios dela. Não sei. Sei: toquei. Macios. Vermelhos. De sangue. De sangue ou de batom? De sangue e de batom. E de lama. Deve ter respingado, na hora que ela caiu. Ou bateu o rosto, entre o capim e o barro? Quando o salto do sapato se prendeu na lama, se quebrou e ela meio que voou sobre o barro e o capim molhado, um último voo, cheio de espanto e tristeza, foi assim? Um voo. Silencioso. Interminável. Ali, talvez, ela tenha entendido que a fuga acabara. E, talvez se debatendo, talvez se entregando, registrara a derradeira visão do céu azul e a aragem fresca do outono, o grito de um pássaro e o hálito do assassino, enquanto a lâmina penetrava repetidamente em sua carne. Nem ele nem eu saberíamos dizer depois quantas punhaladas foram. A pele, dilacerada em tantos lugares, me lembrou as chagas do Cristo da nave central da catedral, os braços abertos na cruz tal como estavam os dela na lama, sob o céu sem nuvens daquela manhã de abril.

Mesmo aqui, hoje, mesmo nesta cidade estrangeira onde vivo de tempos em tempos, mesmo hoje, às vezes, quando estou distraído, quando saio do metrô, ou quando viro uma esquina formada por prédios harmoniosos que fazem o mundo parecer organizado e lógico, ou saio de um café onde comprei cigarros, desavisado, colocando as moedas no bolso do paletó e buscando o isqueiro, eu sinto no rosto aquele mesmo vento frio que soprou de repente naquele mesmo dia de abril, às vezes, nem sempre, às vezes, o mesmo vento frio que pareceu soprar naquele dia morno, balouçando, levemente, de um lado para o outro, suavemente, o capim alto que havia em volta do lago onde a gente foi se refugiar naquela manhã, longe dos adultos, como tínhamos feito durante todo o verão.

Do topo do morro, quando se chegava, seu contorno irregular mal podia ser vislumbrado lá embaixo, rodeado pelos bambuzais altos, onde dezenas de maritacas barulhentas tinham seus ninhos. As maritacas e os bambuzais que ele recordaria depois, tantas vezes, nas longas cartas melancólicas que me escreveria.
Não sei como o lago era na realidade. Nunca mais voltei lá, desde aquele abril. Só tenho a imagem da minha memória. Que o recorda assim: azulíssimo, translúcido, coruscante a multiplicar os raios do sol que parecia brilhar sempre naqueles dias daqueles tempos.

Era uma terça-feira. Acho que era uma terça-feira. Poderia olhar no calendário e ter certeza. Não quero. Prefiro a certeza da minha lembrança, que me diz ter sido uma terça."

(...)


Edney Silvestre, em "Se Eu Fechar os Olhos Agora" - Editora Record - págs.: 7, 8 e 9.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Sutilezas Literárias # 055 - Chris Cleave

(...) "Os funcionários do centro de detenção riam de mim, e sacudiam a cabeça, e voltavam a ler seus jornais. Às vezes me deixavam ler depois deles. Eu gostava de ler seus jornais porque era vital para mim aprender a falar sua língua da maneira como vocês falam. Quando seus jornais escrevem sobre o lugar de onde vim, eles o chamam de mundo em desenvolvimento. Vocês não diriam em desenvolvimento se não acreditassem que nos deixaram um futuro no qual pudéssemos nos desenvolver. É por isso que sei que vocês não são pessoas más.

Na realidade, o que vocês nos deixaram mesmo foram seus objetos abandonados. Quando vocês pensam em meu continente, talvez pensem na vida selvagem — nos leões, nas hienas e nos macacos. Quando penso nele, penso em todas as máquinas quebradas, nas coisas gastas, estragadas, despedaçadas e rachadas. Sim, nós temos leões. Eles estão dormindo nos tetos de contêineres enferrujados. Também temos hienas. Elas estão partindo os crânios dos homens lentos demais para fugir de seus próprios soldados. E os macacos? Os macacos estão lá longe, na extremidade da aldeia, brincando em cima de uma montanha de computadores velhos que vocês mandaram para ajudar em nossa escola — a escola que não tem eletricidade.

Do meu país vocês tiraram o futuro e para meu país vocês mandaram os objetos de seu passado. Não temos a semente, temos a casca. Não temos o espírito, temos o crânio. Sim, o crânio. É nisso que eu pensaria se tivesse de dar um nome melhor para meu mundo. Se o Primeiro-ministro da Parte Mais Calma do Final da Tarde me telefonasse um dia e dissesse: Abelhinha, coube a você a grande honra de dar um nome ao seu antigo e muito amado continente, então eu diria... Senhor, nosso mundo será chamado de Gólgota, o lugar da morte. Teria sido um bom nome para a minha aldeia, mesmo antes de os homens virem queimar nossas cabanas e perfurar o petróleo. Teria sido um bom nome para a clareira em torno da árvore chamada limba na qual nós, crianças, nos balançávamos no velho pneu careca, e pulávamos nos assentos do Peugeot quebrado de meu pai e do Mercedes quebrado de meu tio, com as molas saltando para fora do couro, e cantávamos músicas de igreja de um livro de hinos sem capa e com as páginas coladas com fita adesiva. Gólgota foi o lugar onde cresci, onde até os missionários fecharam com tábuas as portas e as janelas de sua missão e nos deixaram com os livros santos, que não valiam a despesa de ser despachados de volta para seu país. Em nossa aldeia, na única Bíblia existente faltavam todas as páginas depois do versículo 46 do capítulo 27 de Mateus, de modo que a conclusão de nossa religião, o máximo que qualquer um de nós sabia era: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

Era assim que vivíamos, felizes e sem esperança. Eu era muito nova então, e não sentia falta de ter um futuro porque não sabia que tinha direito a um. Tudo o que sabíamos do resto do mundo era o seu filme velho, muito velho. Sobre homens que estavam com muita pressa, às vezes em aviões a jato, às vezes em motocicletas e às vezes de cabeça para baixo. Quanto a notícias, só tínhamos a TV Gólgota, cuja programação era feita por nós mesmas. Havia apenas a moldura de madeira que um dia contornara a tela de um aparelho, e a moldura ficava apoiada na poeira vermelha embaixo da limba, e minha irmã Nkiruka costumava pôr a cabeça atrás da moldura para fazer as cenas. Esse é um bom truque. Sei agora que deveríamos ter chamado aquilo de reality showMinha irmã costumava ajeitar o laço do vestido e colocar com capricho uma flor no cabelo, depois sorria através da tela e dizia:

Olá, estas são as notícias da BBC, hoje vai nevar sorvete do céu, e ninguém vai mais precisar andar até o rio para buscar água porque os engenheiros virão da cidade para instalar uma bomba no meio da aldeia. E nós, as outras crianças, sentadas em semicírculo diante do aparelho de TV, assistíamos à Nkiruka dando as notícias. Adorávamos essas frações mais leves dos sonhos dela. Na sombra agradável da tarde, soltávamos exclamações encantadas e dizíamos: Uau!

Uma das coisas boas do mundo dos excluídos é que você pode conversar com a televisão. Nós, crianças, costumávamos gritar para Nkiruka:

— Essa neve de sorvete, a que horas vai ser?
— De noitinha, é claro, quando o dia está mais fresco.
— Como é que sabe disso, Madame Apresentadora da Televisão?
— Porque o dia tem de estar bem fresco, se não o sorvete derrete, é claro. Vocês,
crianças, não sabem nada, não é?

E nós nos sentávamos outra vez e balançávamos a cabeça uns para os outros, concordando — evidentemente, o dia precisaria primeiro estar bastante fresco." (...)

Chris Cleave, em "Pequena Abelha" - Capítulo 7 
Editora Intrínseca 2011 -  Tradução de Maria Luiza Newlands

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Sutilezas Literárias # 054 - Marcelo Rubens Paiva

"Subi numa pedra e gritei:

– Aí Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin.

Estava debaixo d'água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin. Acabara todo a loucura, baixou o santo e me deu um estado total de lucidez: "estou morrendo afogado". Mantive a calma, prendi a respiração sabendo que ia precisar dela para boiar e agüentar até que alguém percebesse e me tirasse dali. "Calma, cara, tente. pensar em alguma coisa." Lembrei que sempre tivera curiosidade em saber como eram os cinco segundos antes da morte, aqueles em que o bandido com vinte balas no corpo suspira...


– Sim, Xerife, o dinheiro do banco está enterrado na montanha azul.

Por que o cara não manda todo o mundo tomar no cu e morre em paz?
O fôlego tava acabando, "devem pensar que estou brincando".
Era estranho não estar mexendo nada, não sentia nenhuma dor e minha cabeça estava a mil por hora. "Como é que vai ser? Vou engolir muita água ? Será que vai vir uma caveira com uma foice na mão?"

– Venha bonecão, vamos fazer um passeio para o mundo do além, uuuaaaaaaa!!!

Será que vou pro céu? Acho que não, as últimas missas a que fui eram as de sétimo dia dos tios e avós. Depois, não sei se deus gosta de jovens que, vez em quando, dão uma bola, gostam de rock. Pelo menos não é isso que os seus representantes na Terra demonstram. E, meu negócio vai ser com o diabo, vou ganhar chifrinhos, um rabinho em forma de flecha e ficar peladinho, curtindo uma fogueira.

De repente estava respirando, alguém me virou.

– Você tá bem? Era o Professor Urtiga, que me carregava no colo. Sem saber o que dizer, pedi uma respiração boca a boca. Ele me olhou assustado e foi me levando pra margem fazendo a respiração. Já em chão firme, os bêbados e loucos falavam:

– Êi, Marcelo, levanta!
– Que é isso, Paiva?
– E aí, tinha muito ouro?
– Levanta, que ele fica bom logo, é só dar uma chacoalhada.
– Isso, me levanta, eu devo estar meio bêbado.

Me levantaram, mas não deu em nada. Todos ficaram impressionados, logo começaram a transar uma ida a um hospital qualquer: uma cabeça mágica arrumou uma tábua. Deitaram-me e fomos até onde estavam os carros. Não havia dúvidas de que a Kombi era o melhor deles. Entraram Urtiga, Florência, Marcinha, Gregor e não sei mais quem. Urtiga foi cantando em castelhano, imaginei que fosse algum ritual maia, já que ele é mexicano. Gregor foi cutucando meu pé e chamou seu deus que até hoje não sei quem é, Marcinha apelou pro Pai Nosso e a Florência só chorava.

O caminho tava demorando, mas eu nem me importava, tava gostoso ali, deitado, ouvindo o canto maia, com a certeza de que nada de grave havia acontecido. No hospital me dariam uma injeção qualquer e tudo bem. Urtiga começou a passar a mão na minha cabeça. Reparei que ele tava preocupado, olhei pra sua mão e vi que estava toda ensangüentada. Só poderia ser de algum corte da minha cabeça.

Chegando no pronto-socorro, percebi que o negócio era sério: maca, oxigênio, enfermeiros, médicos, maca correndo, teto branco, todo o mundo olhando, mesa de Raio X.

– Sente aqui?
– Não.
– E aqui?
– Só acima do pescoço.
– Ih, meu deus...

Veio uma mulher: disse calmamente meu nome e pedi para avisar minha família em São Paulo.

– Ah! Avisa também o Dr. Miguel aqui em Campinas. O telefone dele é 29045.

Não sei como consegui lembrar o telefone do pai da minha ex-girl.

Comecei a pensar nela, doce Lalá, faz quase dois anos e não teve outra paixão igual. Lembrei-me de que sempre a gente ia jantar fora, pedíamos vinho e ficávamos tão bêbados que todas as privadas de bares campineiros estavam registradas com meu vômito.

– Não, moça, não corte minha unha, é que eu toco violão e vou fazer uma gravação neste fim de semana. Seria a primeira vez que ia entrar num estúdio profissional.
– Guarda esse colar, que ele é muito especial.
– Pô, meu cabelo não, é que eu sou muito vaidoso. Me deixaram carequinha, carequinha. Apaguei."

Marcelo Rubens Paiva, em "Feliz Ano Velho" - páginas 9 à 11 - Editora Brasiliense

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Sutilezas Literárias # 053 - Richard Bach

(...)
" A mesma regra mantém se para os que aqui estão agora, é claro: escolheremos o nosso próximo mundo através daquilo que aprendermos neste. Não aprender nada significa que o próximo mundo será igual a este, com as mesmas limitações e pesos de chumbo a vencer.
Abriu as asas e, voltando-se de frente para o vento, continuou:

— Mas você, Fernão, aprendeu tanto de uma só vez que não teve de passar por mil vidas para chegar a esta.

Um instante depois estavam de novo no ar, treinando. A formação "point roll" era difícil, pois na posição invertida Fernão tinha de pensar de cabeça para baixo, virando a curva da asa ao contrário, mas virando-a em perfeita harmonia com a do seu instrutor.

— Vamos tentar outra vez — repetia Henrique, incansável. — Vamos tentar outra vez. — E, finalmente: — Está bom.

E começaram a praticar "loops" exteriores.
Uma noite, as gaivotas que não praticavam o vôo noturno juntaram-se na praia, para pensar. Fernão reuniu toda a sua coragem e dirigiu-se à gaivota mais velha, que, segundo diziam, devia passar em breve para outro mundo.

— Chiang... — começou ele, um pouco nervoso.

A velha gaivota olhou-o com bondade.

— Diga, meu filho.

Em vez de enfraquecer, a idade dera força ao Mais Velho. Em voo batia qualquer gaivota do bando, e aprendera perícias de que os outros só muito lenta e gradualmente começavam agora a aperceber-se.

— Chiang, este mundo não é o paraíso, é?

O Mais Velho sorriu ao luar:

— Você está aprendendo outra vez, Fernão Gaivota.

— Bem, e o que é que acontece depois disso? Para onde vamos? Não há um lugar chamado paraíso?

— Não, Fernão, não há tal lugar. O paraíso não é um lugar nem um tempo. O paraíso é ser perfeito. — Ficou em silêncio durante um momento. — Você voa com muita velocidade, não voa?

— Eu... Eu gosto da velocidade — respondeu Fernão, surpreendido mas orgulhoso de que o Mais Velho o tivesse notado.

— Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um limite, e a perfeição não tem limites. A velocidade perfeita, meu filho, é estar ali.

Sem avisar, Chiang evaporou-se e apareceu à borda da água, à distância de quinze metros, numa centelha de instante. Depois evaporou-se outra vez e surgiu ao lado de Fernão, no mesmo milésimo de segundo.

— É divertido — comentou.

Fernão ficou atordoado. Esqueceu-se de fazer perguntas acerca do paraíso.

— Como é que se faz isso? O que é que se sente? A que distância se pode ir?

— Desde que você o deseje, pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento — disse-lhe o Mais Velho. — Que me lembre, já fui a todos os lugares e a todos os momentos. — Olhou o mar, pensativo. — É estranho... As gaivotas que desprezam a perfeição por amor ao movimento não chegam a parte alguma, devagar. As que ignoram o movimento por amor à perfeição chegam a toda parte, instantaneamente. Lembre-se, Fernão, o paraíso não é um lugar nem um tempo, porque lugar e tempo não significam nada. O paraíso é ...

— Pode ensinar-me a voara assim?

Fernão Gaivota tremia de ansiedade por conquistar outro desconhecido.

— Claro, se você desejar aprender. " (...)


Richard Bach, em "Fernão Capelo Gaivota"
Páginas: 76, 77, 90, 91 e 93. 
Tradução: Antônio Ramos Rosa e Madalena Rosález
Editora Nórdica