"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Sutilezas Literárias # 060 - Laurentino Gomes

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A montaria usada por D. Pedro nem de longe lembrava o fogoso alazão que, meio século mais tarde, o pintor Pedro Américo colocaria no quadro “Independência ou Morte”, também chamado de “O Grito d Ipiranga”, a mais conhecida cena do acontecimento. O coronel Marcondes se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma “bela besta baia”.
Em outras palavras, uma mula sem nenhum charme, porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e esburacados. Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente.

O dia 7 de setembro amanheceu claro e luminoso nos arredores de São Paulo. O litoral paulista, porém, estava frio, úmido e tomado pelo nevoeiro. Faltava ainda uma hora para o nascer do sol quando D. Pedro saiu de Santos, cidadezinha de 4.781 habitantes, onde passara o dia anterior inspecionando as seis fortalezas que guarneciam as entradas pelo mar e visitando a família do ministro José Bonifácio de Andrada e Silva. Sua comitiva era relativamente modesta para a importância da jornada que iria empreender. Além da guarda de honra, organizada nos dias anteriores de forma improvisada nas cidades do vale do Paraíba, enquanto viajava do Rio de Janeiro para São Paulo, acompanhavam D. Pedro o coronel Marcondes, o padre Belchior, o secretário itinerante Luís Saldanha da Gama, futuro marquês de Taubaté, o ajudante Francisco Gomes da Silva e os criados particulares João Carlota e João Carvalho.

Eram todos muito jovens, a começar pelo próprio D. Pedro, que completaria 24 anos um mês depois, no dia 12 de outubro. Padre Belchior, com a mesma idade, nascido em Diamantina, era vigário da cidade mineira de Pitangui, maçom e sobrinho de José Bonifácio. Virou testemunha do Grito do Ipiranga por acaso. Eleito deputado por Minas Gerais para as cortes constituintes portuguesas, convocadas no ano anterior, deveria estar em Lisboa participando dos debates. A delegação mineira, porém, foi a única a permanecer no Brasil em virtude das divergências internas e da incerteza a respeito do que se passava em Portugal. Saldanha da Gama, de 21 anos, era, além de secretário itinerante, camareiro e estribeiro mor do príncipe. Tinha o privilégio de ajudá-lo a se vestir e a montar a cavalo. Com 29 anos, Francisco Gomes da Silva, também chamado de “O Chalaça” — palavra que significa zombeteiro, gozador ou piadista —, acumulava as funções de “amigo, secretário, recadista e alcoviteiro” de D. Pedro, segundo o historiador Octávio Tarquínio de Sousa.

Ou seja, era um faz-tudo, encarregado de arranjar mulheres para o príncipe, proteger seus negócios e segredos pessoais e defendê-lo em qualquer circunstância, por mais difícil e escusa que fosse. Marcondes, o mais velho de todos, tinha 42 anos. Nas primeiras duas horas, ainda sob a luz difusa do amanhecer, a comitiva percorreu de barco os canais e rios de água escura dos manguezais entre Santos e o porto fluvial de Cubatão, vilarejo com menos de duzentos habitantes ao pé da serra do Mar. Nesse local, D. Pedro encontrou os animais selados e o restante da guarda que o acompanharia até São Paulo. A subida da serra, porém, teve de ser retardada.

Prostrado pelos problemas intestinais, o príncipe refugiou-se na modesta estalagem situada à beira do porto. Maria do Couto, responsável pelo estabelecimento, preparou-lhe um chá de folha de goiabeira, remédio ancestral usado no Brasil contra diarreia. (...)

Laurentino Gomes, em "1822" - Editora Nova Fronteira.

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