"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Sutilezas Literárias # 063 - Lilia Moritz Schawrcz

"No entanto, uma tosse insistente começava a acompanhar d. Pedro: era uma pneumonia que lhe tomava o pulmão esquerdo. O ex-imperador do Brasil passou o aniversário de 66 anos confinado em seu quarto, com os amigos, a filha e os netos, que não dissimulavam a preocupação. No dia 3 de dezembro chegaram os príncipes Pedro Augusto e Augusto de Saxe para as últimas

despedidas. A meia-noite e meia do dia 5 de dezembro de 1891, o antigo monarca falecia e a princesa Isabel tornava-se a sucessora legal do Trono do Império do Brasil: d. Pedro morrera sem abdicar de seu cargo.

O atestado de óbito foi lavrado por Mota Maia, Charcot e Bouchard, que apresentaram como causa da morte uma pneumonia aguda do lado esquerdo. Em meio à confusão de seu quarto, entre crucifixos e livros de anotações, jazia o imperador, cuja barba, tantas vezes comentada, aparentava estar ainda mais branca, quase artificial em razão da pequena porção de cola que recebera para ficar mais lisa e dura sobre o peito.

Ritual derradeiro, na morte os símbolos ganham papel destacado. Vestiram-no imperialmente, pondo-lhe o colar da Ordem da Rosa sob a barba e, perto do crucifixo de prata, enviado pelo papa, a Ordem do Cruzeiro do Sul, que ele parecia tanto estimar. Duas bandeiras brasileiras foram utilizadas para cobrir as compridas pernas do morto. Como que por acaso, por ideia do fotógrafo Nadar — que buscava um melhor ângulo —, um livro grosso foi colocado debaixo da cabeça do imperador, para mantê-la elevada: pela última vez, e dessa feita como uma feliz coincidência, os livros compunham a imagem de d. Pedro. Por fim, o conde D’Eu completou a cena: encontrou um pacote lacrado que

continha terra trazida do Brasil a pedido do monarca. Sobre ele estava escrito pelo próprio punho de d. Pedro: “É terra de meu país; desejo que seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha pátria”. O ex-monarca seguia à risca o costume oriental de levar para o exílio um punhado de terra da pátria. Diz a tradição que “o galho não esquece o tronco e que a areia faz parte do areai”. De manhã, um grupo de brasileiros residentes em Paris deixou no hotel dois ramos — um de fumo e outro de café. Novamente o ritual e o teatro se confundem com a vida. A imagem do imperador condecorado com elementos nacionais — a terra brasileira, o céu do Brasil representado pelo Cruzeiro do Sul,

os ramos de fumo e de café que saem da casaca e se juntam ao féretro — ganha autonomia no imaginário.

Para desconforto do governo brasileiro, d. Pedro recebeu na morte o tratamento e as honras de chefe de Estado; o então presidente francês, Sadi Carnot, mandou um ajudante-de-ordens ao Hotel Bedford para apresentar pêsames. O ritual em Paris duraria três dias e depois o corpo seguiria para Portugal, onde o pousariam ao lado do de Teresa Cristina. Na morte o imperador deposto perde lugar para um rei mistificado que nesse momento parece recuperar o espaço de uma monarquia imaginária em que

a figura física não tem quase nenhuma relevância. Nesse caso, “o rei morto é cada vez mais rei”. O rei exilado é enterrado como imperador brasileiro, adornado com os símbolos de sua terra. O antigo abandono se converte em mais um grande ritual, como se d. Pedro fizesse jus ao ditado: “Rei que é rei, jamais perde a realeza”.


Lilia Moritz Schwarcz , em "As Barbas do Imperador" – pp. 489 e 490 – Editora Companhia das Letras

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