"Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa.
O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro.
Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava
a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador.
No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou
um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno
de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do
restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda;
a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em
mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai
conversava em português com os clientes do restaurante:
mascates, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do
Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de
encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que
moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões
que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês
e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam,
vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo:
um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça,
um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva,
uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de
que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam,
e as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.
Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se
dizia poeta, um certo Abbas, que tinha morado no Acre e agora vivia
navegando no Amazonas, entre Manaus, Santarém e Belém.
Halim passou a frequentar o Biblos aos sábados, depois ia todas
as manhãs, beliscava uma posta de peixe, uma berinjela recheada,
um pedaço de macaxeira frita; tirava do bolso a garrafinha de arak,
bebia e se fartava de tanto olhar para Zana. Passou meses assim:
sozinho num canto da sala, agitado ao ver a filha de Galib,
acompanhando com o olhar os passos da gazela. Contemplava-a,
o rosto ansioso, à espera de um milagre que não acontecia. Ia pescar
nos lagos e trazia tucunarés e postas de surubim para Galib.
O dono do Biblos lhe agradecia, não cobrava o almoço, e Halim
se entusiasmava com essa intimidade que ainda não bastava para
aproximá-lo de Zana. Um dia, Abbas viu o amigo na loja Rouaix,
perto do Restaurante Avenida, no centro de Manaus. Halim queria
comprar um chapéu de mulher, francês, que Marie Rouaix lhe
venderia a prestação. Abbas se antecipou a madame Rouaix,
cutucou o amigo, saíram da loja e foram ao Café Polar, perto
do Teatro Amazonas. Conversaram. Halim desabafou, e Abbas
sugeriu que desse a Zana um gazal, não um chapéu.
'Sai mais barato”, disse o poeta, “e certas palavras não saem da moda.'
Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos, que ele
mesmo traduziu para o português. Halim leu e releu os versos rimados:
lua com nua, amêndoa com tenda, amada com almofada.
Pôs as folhas de papel num envelope e no dia seguinte fingiu
esquecê-lo na mesa do restaurante. Passou uma semana sem
dar as caras no Biblos, e quando reapareceu no restaurante,
Galib lhe devolveu o envelope:
'Esqueceu na mesa, por pouco não jogamos fora. Estava pescando?'
Ele não respondeu; abriu o envelope e passou a ler em voz baixa
os gazais de Abbas. Galib ouvia com atenção, mas o burburinho dos
clientes abafava a voz de Halim. Zana não andava por ali, e ele parou
de ler antes do fim, já decepcionado. 'Lindos poemas', elogiou Galib.
'Uma mulher sentiria essas palavras na carne.' Palavras na carne,
repetiu Halim, enquanto saía do Biblos. Ele relia os gazais de
Abbas no intervalo do trabalho. Às seis da manhã já estava vendendo
seus badulaques nas ruas e praças de Manaus, nas estações e
mesmo dentro dos bondes; só parava de mascatear por volta das oito
da noite; depois passava no Café Polar, antes de voltar para o quarto
da Pensão do Oriente. Na madrugada de uma sexta-feira encontrou
Cid Tannus, um cortejador das últimas polacas e francesas que
ainda moravam na cidade decadente. Beberam o vinho que Tannus
comprara de marinheiros franceses e italianos. Depois chegou Abbas,
ainda sóbrio, mas animado com outras encomendas de gazais.
Bateu nas costas de Halim: 'E então, paisano? Que cara é essa?'.
Abbas, diante da ameaça de um fracasso, cochichou no ouvido do amigo:
'Os gazais são convincentes, a paciência é poderosa, mas o coração de
um tímido não conquista ninguém'.
Pediu duas garrafas de vinho, entregou-as a Halim e disse:
'Amanhã, sábado, dois litros de vinho e... felicidades, paisano!'
Enfim, Halim decidiu agir, cheio da coragem exacerbada pelo vinho.
Ele se exaltava quando, nas nossas conversas, me contava os
detalhes da conquista amorosa. 'Ah... a ânsia e o transe que tomaram
conta de mim naquela manhã', disse-me.
As rimas de Abbas: louco com afoito. O que mais queria Zana?
Então, na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos.
Os olhos dele fisgaram a moça no meio da sala. O viúvo Galib notou o
fogo no visitante. Ficou paralisado, o peixe de boca aberta e olhos
saltados na bandeja equilibrada na mão esquerda. Talheres silenciaram,
rostos viraram-se para Halim. As pás do ventilador, o único zunido
no mormaço da sala. Ele deu três passos na direção de Zana, aprumou
o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme,
grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo. Não parou, não pôde
parar de declamar, a timidez vencida pela torrente da paixão, pelo
ardor que irrompe subitamente. Zana, a moça de quinze anos, ficou
estonteada, buscou refúgio junto ao pai. O zunido do ventilador foi
abafado por murmúrios; alguém riu, muitos riram, mas as gaitadas
não alteraram a expressão do rosto de Halim.
Tinha o olhar concentrado em Zana, e os poros todos da pele
expeliam o vinho da felicidade. Tímido, mas corajoso num rompante,
nem ele mesmo soube como atravessou a sala e segurou o braço
de Zana, cochichou-lhe alguma coisa e se afastou, de frente para ela,
encarando-a com o olhar devorador, dócil e cheio de promessas.
Permaneceu assim até que as risadas cessaram, e um silêncio
solene deu mais força e sentido ao olhar de Halim. Ninguém o
molestou, nenhuma voz surgiu naquele momento. Então ele se
retirou do Biblos. E dois meses depois voltou como esposo de Zana".
(...)
Milton Hatoum, em Dois Irmãos, Capítulo 2.
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