"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Sutilezas Literárias # 021 - Milton Hatoum

"Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo da casa. 
O almoço era servido às onze, comida simples, mas com sabor raro. 
Ele mesmo, o viúvo Galib, cozinhava, ajudava a servir e cultivava
 a horta, cobrindo-a com um véu de tule para evitar o sol abrasador.
 No Mercado Municipal, escolhia uma pescada, um tucunaré ou
um matrinxã, recheava-o com farofa e azeitonas, assava-o no forno 
de lenha e servia-o com molho de gergelim. Entrava na sala do 
restaurante com a bandeja equilibrada na palma da mão esquerda; 
a outra mão enlaçava a cintura de sua filha Zana. Iam de mesa em 
mesa e Zana oferecia guaraná, água gasosa, vinho. O pai 
conversava em português com os clientes do restaurante: 
mascates, comandantes de embarcação, regatões, trabalhadores do
 Manaus Harbour. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de 
encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que 
moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões
 que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês 
e espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, 
vidas em trânsito, um vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: 
um naufrágio, a febre negra num povoado do rio Purus, uma trapaça, 
um incesto, lembranças remotas e o mais recente: uma dor ainda viva, 
uma paixão ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de 
que os caloteiros saldassem as dívidas. Comiam, bebiam, fumavam, 
as vozes prolongavam o ritual, adiando a sesta.
Quem indicou o restaurante ao jovem Halim foi um amigo que se 
dizia poeta, um certo Abbas, que tinha morado no Acre e agora vivia
 navegando no Amazonas, entre Manaus, Santarém e Belém. 
Halim passou a frequentar o Biblos aos sábados, depois ia todas
 as manhãs, beliscava uma posta de peixe, uma berinjela recheada,
 um pedaço de macaxeira frita; tirava do bolso a garrafinha de arak, 
bebia e se fartava de tanto olhar para Zana. Passou meses assim: 
sozinho num canto da sala, agitado ao ver a filha de Galib, 
acompanhando com o olhar os passos da gazela. Contemplava-a, 
o rosto ansioso, à espera de um milagre que não acontecia. Ia pescar 
nos lagos e trazia tucunarés e postas de surubim para Galib. 
O dono do Biblos lhe agradecia, não cobrava o almoço, e Halim 
se entusiasmava com essa intimidade que ainda não bastava para 
aproximá-lo de Zana. Um dia, Abbas viu o amigo na loja Rouaix, 
perto do Restaurante Avenida, no centro de Manaus. Halim queria
 comprar um chapéu de mulher, francês, que Marie Rouaix lhe 
venderia a prestação. Abbas se antecipou a madame Rouaix, 
cutucou o amigo, saíram da loja e foram ao Café Polar, perto 
do Teatro Amazonas. Conversaram. Halim desabafou, e Abbas 
sugeriu que desse a Zana um gazal, não um chapéu.
'Sai mais barato”, disse o poeta, “e certas palavras não saem da moda.'
Abbas escreveu em árabe um gazal com quinze dísticos, que ele 
mesmo traduziu para o português. Halim leu e releu os versos rimados: 
lua com nua, amêndoa com tenda, amada com almofada. 
Pôs as folhas de papel num envelope e no dia seguinte fingiu
esquecê-lo na mesa do restaurante. Passou uma semana sem 
dar as caras no Biblos, e quando reapareceu no restaurante, 
Galib lhe devolveu o envelope:
'Esqueceu na mesa, por pouco não jogamos fora. Estava pescando?'
Ele não respondeu; abriu o envelope e passou a ler em voz baixa 
os gazais de Abbas. Galib ouvia com atenção, mas o burburinho dos 
clientes abafava a voz de Halim. Zana não andava por ali, e ele parou 
de ler antes do fim, já decepcionado. 'Lindos poemas', elogiou Galib. 
'Uma mulher sentiria essas  palavras na carne.' Palavras na carne, 
repetiu Halim, enquanto saía do Biblos. Ele relia os gazais de
Abbas no intervalo do trabalho. Às seis da manhã já estava vendendo
 seus badulaques nas ruas e praças de Manaus, nas estações e 
mesmo dentro dos bondes; só parava de mascatear por volta das oito 
da noite; depois passava no Café Polar, antes de voltar para o quarto 
da Pensão do Oriente. Na madrugada de uma sexta-feira encontrou
Cid Tannus, um cortejador das últimas polacas e francesas que 
ainda moravam na cidade decadente. Beberam o vinho que Tannus 
comprara de marinheiros franceses e italianos. Depois chegou Abbas, 
ainda sóbrio, mas animado com outras encomendas de gazais. 
Bateu nas costas de Halim: 'E então, paisano? Que cara é essa?'. 
Abbas, diante da ameaça de um fracasso, cochichou no ouvido do amigo: 
'Os gazais são convincentes, a paciência é poderosa, mas o coração de
 um tímido não conquista ninguém'.
Pediu duas garrafas de vinho, entregou-as a Halim e disse: 
'Amanhã, sábado, dois litros de vinho e... felicidades, paisano!'
Enfim, Halim decidiu agir, cheio da coragem exacerbada pelo vinho. 
Ele se exaltava quando, nas nossas conversas, me contava os
 detalhes da conquista amorosa. 'Ah... a ânsia e o transe que tomaram 
conta de mim naquela manhã', disse-me.
As rimas de Abbas: louco com afoito. O que mais queria Zana? 
Então, na manhã daquele sábado, Halim entrou cambaleando no Biblos
Os olhos dele fisgaram a moça no meio da sala. O viúvo Galib notou o 
fogo no visitante. Ficou paralisado, o peixe de boca aberta e olhos 
saltados na bandeja equilibrada na mão esquerda. Talheres silenciaram,
 rostos viraram-se para Halim.  As pás do ventilador, o único zunido 
no mormaço da sala. Ele deu três passos na direção de Zana, aprumou
 o corpo e começou a declamar os gazais, um por um, a voz firme, 
grave e melodiosa, as mãos em gestos de enlevo. Não parou, não pôde 
parar de declamar, a timidez vencida pela torrente da paixão, pelo
 ardor que irrompe subitamente. Zana, a moça de quinze anos, ficou 
estonteada, buscou refúgio junto ao pai. O zunido do ventilador foi 
abafado por murmúrios; alguém riu, muitos riram, mas as gaitadas 
não alteraram a expressão do rosto de Halim. 
Tinha o olhar concentrado em Zana, e os poros todos da pele 
expeliam o vinho da felicidade. Tímido, mas corajoso num rompante, 
nem ele mesmo soube como atravessou a sala e segurou o braço 
de Zana, cochichou-lhe alguma coisa e se afastou, de frente para ela, 
encarando-a com o olhar devorador, dócil e cheio de promessas. 
Permaneceu assim até que as risadas cessaram, e um silêncio 
solene deu mais força e sentido ao olhar de Halim. Ninguém o 
molestou, nenhuma voz surgiu naquele momento.  Então ele se 
retirou do Biblos. E dois meses depois voltou como esposo de Zana".
(...)
Milton Hatoum, em Dois Irmãos, Capítulo 2.

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