"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 28 de julho de 2016

O Casal de Velhos, por Edson Gabriel Garcia

O Casal de Velhos
Edson Gabriel Garcia

O céu estava escurecendo rapidamente, fechado, com nuvens escuras, quase pretas, anunciando uma tempestade de trovões, relâmpagos e água pesada. Manezinho apressou o passo na estrada deserta meio sem saber o que fazer. Tinha pegado uma carona até o trevo e agora caminhava em direção à cidade que se escondia do lado de lá da pequena montanha. Quase uma hora de caminhada e via apenas a estradinha se espichando, em direção ao monte de terra. Tomaria chuva, com certeza. No máximo, tentaria se esconder debaixo de uma daquelas arvorezinhas raquíticas que margeavam o caminho.
A escuridão aumentou ainda mais, fazendo com que aquele homem danado de corajoso tivesse medo do temporal e do aguaceiro que estavam para vir. Pensou em correr um pouco, mas desistiu, achando que nada adiantaria. Olhou para cima, como que buscando explicação, e resmungou: ―Que venha água, que eu não tenho medo!‖
Mal acabara de resmungar, avistou uma casinha branca e suja, na beira da estrada quase sem vegetação. Manezinho levou um susto que o fez arrepiar: até bem pouco tempo atrás, algumas dezenas de passos antes, a casinha não estava ali. Ou estava vendo uma miragem ou o medo da tempestade era real e não o estava deixando ver nada a sua frente. De qualquer forma, após a primeira impressão de estranhamento, apressou-se em bater à porta e pedir guarida, antes que a natureza o castigasse: — Ó de casa!
Silêncio.
— Ó de casa! Tem gente aí?
Ouviu um ruído de ferro rangendo e a porta de madeira se abriu. Um rosto velho, cheio de rugas, mas simpático, apareceu com um sorriso acolhedor. Manezinho se explicou à velha senhora:
— Vem chuva brava aí, minha senhora. Ainda estou longe da cidade...
A velha olhava ternamente para Manezinho.
— ...se a senhora não se importar...
— Claro que não, meu filho. Entre. A casa é pobre, mas dá para receber mais um.
— Obrigado! Assim que a chuva passar, eu vou embora.
— Não precisa ter pressa. A casa é de pobre, mas cabe mais um. Entre.
Manezinho entrou. A casa era pobre mesmo. Na verdade, era estranha, mais estranha do que pobre: o cômodo em que se encontrava era grande, escuro, com luz de velas e três cadeiras apenas; havia um outro cômodo, mas estava fechado. Numa das cadeiras estava sentado o outro habitante da casa, um velho não menos simpático:
— Fique à vontade disse, levando para cumprimentá-lo com uma enorme mão fria. — Sente-
se.
Manezinho sentou-se. Os velhos também se sentaram. Pareciam tristes, mas queriam conversar.
— O senhor vem de longe?
Manezinho contou alguns pedaços de sua história.
— Não tenho lugar de onde venho. Faz três ou quatro anos que não tenho lugar fixo. Sou do mundo... Andando aqui e ali... Paro um pouco em cada lugar, trabalho, ganho algum dinheiro e torno a seguir caminho.
Um cheiro forte de velas tomava conta do cômodo e da história.
— Você não tem família?
Manezinho não soube quem perguntou, se o velho ou a velha. Teve a impressão de que a voz não viera de nenhum dos dois. Que viera de algum outro lugar, tamanha era a quietude silenciosa do casal de velhos.
— Não tenho. Já tive um dia! Tive duas.
7
— Duas?
— É. Uma família onde eu nasci e outra que me criou desde pequeno. Depois que eu cresci e aprendi uma profissão, resolvi correr o mundo à procura de meus pais verdadeiros.
— E ainda não encontrou seus pais verdadeiros?
Manezinho entendeu que a pergunta tinha vindo da velha senhora. A fraca luz das velas e o escuro do cômodo davam-lhe a impressão de que ela era transparente, algo nebuloso, sem consistência. Achou que fosse maluquice, efeito do cansaço e medo da tempestade. Olhou mais fixamente para ela e respondeu:
— Não. Acho que nem vou encontrar. Mas gostaria muito de encontrá-los e dizer que gosto muito deles, mesmo tendo sido criado por outras pessoas. Eu tenho uma fotografia deles me carregando no colo. Está muito gasta e estragada. Mas é a única pista que tenho para procurá-los.
Quem sabe, um dia...
— Nós também passamos boa parte da vida procurando o único filho que tivemos...
Manezinho teve a impressão de que fora o velhinho o dono da fala. Continuou a conversa dirigindo-se a ele:
— Procurando...?
— O destino tirou nosso filho. Eu não gostaria de morrer sem ver nosso filho.
Um silêncio mortal, regado a cheiro de vela, barulho de chuva, trovões e relâmpagos interrompeu momentaneamente a conversa.
— Vou fazer uma sopa. O senhor aceita tomar um prato conosco?
— Aceito, claro.
A velha senhora foi ao outro cômodo, que estava fechado, e no mesmo instante voltou com dois pratos de sopa. Ofereceu um ao velho e o outro a Manezinho. Voltou, buscou outro para si e veio sentar-se junto deles.
— É uma sopa pobre, mas é a mesma que ofereceríamos ao nosso filho se o encontrássemos.
Manezinho tomou a sopa mais por gentileza. Não tinha gosto algum o líquido que ele levava a boca. Depois continuaram a conversa, devagar, com intervalos de silêncio, mas sem parar. Havia nos velhos algo de extremamente simpático e familiar, algo que, apesar das estranhezas da casa e do comportamento dele, cativava Manezinho.
— Acho que seria a minha maior alegria reencontrar meus pais.
— Também seria a nossa grande alegria rever o filho que o destino levou...
A conversa arrastou-se por mais tempo. Manezinho, às vezes, tinha a impressão de que conversava sozinho, tamanha era a quietude do casal de velhos. Foi assim até que sentiu sono. A tempestade tinha passado e ele decidiu que podia continuar a caminhada. Mas a gentileza dos velhinhos segurou-o mais tempo, dessa vez para dormir.
— Não se vá. Está escuro e a cidade fica longe. Durma aqui e amanhã você seguirá caminho. Não tem cama, mas você pode se ajeitar num canto qualquer.
Ele agradeceu e aceitou. Encostou-se num canto do cômodo, esticou o corpo no chão frio, apoiou a cabeça na mala de lona que trazia consigo e dormiu. Dormiu cansado, ainda com fome, com frio e uma esquisita sensação de não estar entendendo direito sua presença naquela casa e a conversa com o casal de velhos. Dormiu mal, uma noite cheia de sonhos estranhos, pesados e incompreensíveis.
Acordou da noite mal dormida com a luz forte do sol filtrada pelo grosso vidro da porta da casa. Ainda cansado pela noite de sono ruim, correu lentamente os olhos pelos espaços da casa. Procurando primeiro a presença dos velhos e depois os objetos conhecidos. Não encontrou nem uma coisa nem outra. Não havia barulho de pessoas só silêncio. Não havia sinais de vida. Só três cadeiras escuras encostadas à parede e quatro cavaletes de ferro cromado. Na frente dos cavaletes, como se fosse um altar, enormes castiçais com grandes velas brancas pareciam arrumados para alguma cerimônia. Ele deu um pulo, o coração batendo desesperado, quase à boca, e correu para a porta, abrindo-a imediatamente.
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Não fosse Manezinho quem era, uma pessoa acostumada às surpresas, às mudanças, aos reveses da vida, teria sucumbido ante o susto que levou quando percebeu onde estava: acabara de passar a noite na capela do cemitério da cidade. Saiu disparado em direção ao portão. No caminho encontrou uma pessoa, provavelmente o coveiro, cavando duas covas. Parou afobado junto ao homem e perguntou-lhe:
— O senhor pode me dizer se há por aqui uma pequena casa habitada por um simpático casal de velhos?
O coveiro ergueu o corpo, descansou a pá suja de terra e respondeu:
— Não moço. No caminho da cidade só tem mesmo o cemitério. Agora... o casal de velhos simpáticos de que o senhor está falando pode ser o que morreu esta noite. São dois velhos que moram perto da escola. Eles morreram depois da chuvarada. Essas covas são para eles...
Um arrepio profundo quase revirou o corpo de Manezinho. Lembrou-se da conversa, da sopa, do cheiro de vela...
— Onde o senhor disse que eles moram?
— Moravam, moço. Agora já morreram.
— Onde eles moravam?
— Perto da escola. Todo mundo sabe, é só perguntar.
Manezinho disparou pela estrada. Estava um pouco longe, mas a carreira foi tão aflita e desesperada que num instante a cidade chegou perto dele. Mais um instante e descobriu a casa do casal de velhos. Sentiu que estava perto, bem perto de alguma explicação. O cheiro de velas da noite anterior voltou aos seus sentidos quando entrou na pequena sala onde estavam, lado a lado, os dois caixões de madeira com os corpos. Aproximou-se, devagar, e viu os rostos do simpático casal com quem passara a noite anterior. O estômago vazio resmungou em coro com o coração acelerado. Ali estavam seus dois companheiros de conversa! Mas faltava alguma coisa ainda. Faltava uma explicação. Por que ele? Por que ele? Por mais que procurasse entender o episódio da noite passada no cemitério, não conseguia encontrar explicações.
Ficou muito tempo de pé, parado em frente aos corpos em meio à curiosidade das pessoas que ali estavam. Alguém lembrou-se de convidá-lo a sentar-se. Manezinho agradeceu e sentou-se. Os olhos começaram a correr a parede, mecanicamente, procurando aqui e ali os detalhes que estavam escapando de sua compreensão. E foi assim, nessa procura, recolhendo pedaços de lembrança, que reparou em uma moldura desbotada presa à parede.
―Não é possível! Não é possível‖
Apanhou sua carteira e, atrapalhado, remexendo papéis e cédulas velhas de dinheiro, pegou uma pequena fotografia. Nela, um casal abraçava carinhosamente uma criança de cerca de três anos, era a foto dele com seus pais verdadeiros, primeira e única foto, relíquia guardada por anos e anos.
Manezinho levantou-se, trêmulo, e se aproximou da foto maior da parede. Ergueu a sua e comparou. Eram rigorosamente a mesma foto.
A cidade toda ouviu o grito de Manezinho.

Este conto foi publicado no livro "Sete Gritos de Terror" (1991) da Editora Moderna

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