Dado Villa-Lobos -
Memórias de um
Legionário
Autores: Dado Villa-Lobos,
Felipe Demier e Romulo Mattos
Editora: Mauad X - 256 páginas - 2015
Neste livro o guitarrista da Legião Urbana, traz pela
primeira vez histórias da banda contada por um de seus integrantes. Dado
Villa-Lobos, juntamente com Felipe Demier e Romulo Mattos, dá detalhes
instigantes, pitorescos e curiosos de
uma das bandas mais cultuada do rock nacional. Depois de 30 anos do lançamento
do primeiro disco da Legião Urbana, Dado nos conta várias histórias cômicas e
tristes envolvendo ele e seus parceiros de banda. Traz histórias dos
bastidores, conta como foi a relação de sua esposa Fernanda quando ela era
empresária da banda; Dado relata também com riquíssimos detalhes sobre a
composições de algumas músicas e das gravações dos álbuns da banda, assim como
também os shows apresentados por eles em algumas cidades pelo Brasil, primeiro
em danceterias e boates e depois lotando ginásios e estádios de futebol,
protagonizando eventos e fatos históricos para o rock brasileiro. E apesar de
mais de 20 anos de encerramento das atividades da Legião Urbana, ela continua
sendo cultuada e venerada por uma legião de fãs de várias gerações, e vendendo
muito disco ainda. O livro ainda têm algumas fotos de Dado e da Legião.
É minha banda favorita, uma das melhores bandas do rock
brasileiro, senão a melhor.
O livro é dividido em
10 capítulos, mais apresentação e introdução, todos intitulados com trechos de
músicas da Legião Urbana.
Não foi e não é TEMPO PERDIDO ler este livro. Se você é fã
incondicional da banda, é obrigatório lê-lo e tê-lo em sua estante. Gostei muito.
Trechos:
-“Onze de outubro de 1996, 2h15 da madrugada. Toca o
telefone na minha cabeceira. Do outro lado da linha, o doutor Saul me dava
a notícia que, infelizmente, eu já esperava: o Renato estava morto.
Atordoado, desliguei o telefone, acordei Fernanda e liguei pro Rafael,
empresário da banda e grande amigo. Eu e ele chegamos às 5h na casa do Renato, na Rua
Nascimento Silva, em Ipanema. Lá estava Seu Renato, quieto e resignado,
talvez aliviado com o fim do sofrimento do filho. Abraçamo-nos, e ele narrou
rapidamente os últimos momentos daquele drama. Logo apareceu um tio do Renato
que, sereno e
disposto a conversar, nos sugeriu tomar o café da manhã
fora de casa.” – p. 11
-“ O Renato era um cara interessado em artes, e eu tinha
lá minhas predileções artísticas, possivelmente influenciado pelos anos vividos
na França. Um pouco mais para a frente, nos primeiros tempos da Legião, houve
um caso que eu acho que ilustra um pouco essa empatia que se deu, de
imediato, entre mim e o Renato. Isso aconteceu quando nós fomos fazer a prova da
Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). Até hoje, para atuar como músico, é-se
obrigado a fazer essa prova e a se sindicalizar, o que não me parece ter muito
sentido. A questão é que a banda seria atração de um projeto patrocinado pelo
Governo do Distrito
Federal, portanto precisávamos ter a licença da entidade.
Havia a opção de tirara carteira de músico estagiário (amarela) ou a de músico
profissional (azul). Com qualquer uma das duas se podia tocar sem problemas em
eventos públicos.” – p. 38
-“ O comportamento do público às vezes era bizarro, e
isso certamente era outro fator que o Renato levava em consideração quando
pensava se deveria ou não cair na estrada. Não há como esquecer o que aconteceu
no dia 12 de abril, no Circo Troca de Segredos, na Praia da Ondina, Salvador.
Acho que cabiam umas 2 mil pessoas espremidas ali, naquela estrutura
mambembe. Começamos a tocar “Soldados” e muitos punks, todos negros, vestidos
de roupa rasgada, com suástica e coleira com cadeado, começaram a fazer a
saudação nazista. Além de terem feito uma apropriação indébita da nossa música,
parece que mal sabiam o que havia sido, de fato, o nazismo, que proclamava o mito
da superioridade ariana (e certamente não toleraria aqueles contraditórios
punks negros).
Tinha virado uma tradição o pessoal jogar dinheiro no palco
quando tocávamos “Soldados”, mais exatamente, quando o Renato
cantava os versos “Somos soldados/ Pedindo esmola”. Volta e meia, fazíamos
dobradinha com o Ultraje a Rigor, que incluía nos shows aquele reggae,
“Mim quer tocar/ Mim gosta ganhar dinheiro”. Lembro que o Carlo Bartolini,
guitarrista da banda, sempre se apresentava com um casaco de couro. Quando
chegava a hora de tocar aquela música, ele levantava a gola e ficava de
costas para o público, porque chovia moeda em cima dos músicos. E a plateia jogava
com vontade mesmo, a ponto de o Leôspa se esconder atrás da sua
bateria. Depois, os roadies vinham, juntavam as moedas com o rodo e as colocavam em
um saco. As pratas recolhidas iam para a caixinha deles...” – pp. 99 e 100
“-Eu sabia que nós éramos parte de toda uma mudança de
estatuto da linguagem jovem, digamos assim, de uma nova forma de nos
expressar e de fazer música. Mudança que, por sua vez, criou uma
categoria diferente de entretenimento, em que grandes palcos eram montados,
muita gente era mobilizada, e diversas empresas – de áudio, de luz, de
som – estavam sendo criadas em função do que estava acontecendo. A estrutura
ia se aprimorando e, a cada ano, percebia-se que o show biz movimentava mais
dinheiro e se organizava em uma escala industrial. Muitos artistas ganharam
o seu disco de ouro naquela época, e com a Legião não foi diferente, é
claro. A Folha de S.Paulo observou o fenômeno e, em agosto de
1986, publicou uma matéria sobre o recorde de venda de discos. Algumas
gravadoras estavam trabalhando no limite de sua produção e, mesmo assim, não
davam conta dos pedidos dos lojistas.” – p. 125
-“ Eu sempre vi a letra de “Faroeste Caboclo” como uma
referência ao abismo entre o mundo rural e o urbano no Brasil. Entendo João de
Santo Cristo como um migrante, filho da miséria e do atraso social do País. A
sua vida é atravessada pela violência, pela brutalidade das relações humanas e
pelo preconceito de classe e de raça. O cara sai de um rincão sertanejo,
chega à cidade grande – no caso, Brasília, a capital do País –, uma terra onde há
oportunidades, mas onde há também pobreza e tráfico de drogas. Essa é uma história
que poderia ter-se passado no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, ou qualquer
outro grande centro. É como o Renato declarou à revista Bizz, que fez uma
matéria de capa sobre tal música, em julho de 1988: “(...) as pessoas se
identificam com ele [João de Santo Cristo], com a história dele (...) de sobreviver
enfrentando as dificuldades que estão fora do seu controle.”
O lance é que o Renato deu uma explicação surpreendente
aos jornalistas daquela revista. No seu entender, João de Santo Cristo
era um garoto de classe média, um filho de fazendeiro. Ele foi para o
reformatório porque o seu pai havia sido assassinado e não tinha ninguém para tomar conta
dele. Assim, a música inteira mostraria João tentando voltar para o seu meio.
João se viu obrigado a viver com o pessoal mais pobre e por isso ele percebeu o
preconceito e tudo aquilo com que não convivia. “Santo Cristo tem uma certa
nobreza”, garantiu Renato, insistindo nessa ideia. Embora as pessoas pensem
que ele era um “pé-rapado”, tratar-se-ia de “um heroizinho tipo James Dean,
como naquele filme Vidas amargas”. O nosso vocalista queria até mesmo que um
galã de televisão protagonizasse a versão cinematográfica de “Faroeste
caboclo”, e o seu nome preferido era o do Marcos Palmeira. Já o papel de Maria
Lúcia ficaria com a Fernanda Torres.” – pp. 134 e 135
-"Muita gente não votou no Lula com medo do comunismo, mas foi um playboy da direita que promoveu a
apropriação do dinheiro alheio pelo Estado. O mais incrível é que esse
sujeito veio do nada. Ninguém sabia quem era esse aventureiro que aparecia no
horário político obrigatório em cima de um barco, como se estivesse em uma
expedição filmada para o Globo Repórter. E ele ainda declarou à imprensa,
em dezembro de 1990, que gostava muito da Legião! O cara nunca deve ter ouvido
“Que país é este”...
Enfim, o seu pacote econômico foi um choque. O Renato
tinha 150 mil dólares no banco e estava prestes a comprar o apartamento dele,
em Ipanema. Por sorte, eu já havia pago o meu, mas, de toda forma, todo mundo
foi prejudicado. Chegamos até a ter dúvidas sobre a viabilidade da turnê.
Mas tudo isso acabou nos dando mais força. Eu me lembro do Renato falando: “Eu
vou recuperar cada centavo que esse desgraçado me tirou e vou comprar o meu
apartamento.” Nós voltamos a ensaiar com gana e logo botamos o bloco na
rua. Houve grandes apresentações, que envolveram produções de altíssimo
nível.” – p. 165
-“O processo de impeachment do Collor também renovou os
ânimos de muitos brasileiros insatisfeitos com toda aquela situação –
aliás, em várias passeatas do movimento “Fora Collor”, os estudantes cantaram “Tempo
perdido”. Na entrevista que demos ao Jornal do Brasil, em dezembro de
1993, o Renato disse: “A gente não é como esses caras [os políticos]. Eu sou
brasileiro. Esses caras não são brasileiros. Polícia que mata criança, traficante,
essas pessoas sim são animais. A gente acredita no Brasil. Existem muitas
coisas legais.” O trecho específico sobre os policiais (infanticidas) dizia
respeito à Chacina da Candelária, em julho de 1993, que teve repercussão mundial. A questão
da violência urbana aparece em “Os anjos”, ainda que de forma escapista:
“Gostaria de não saber desses crimes atrozes/ É todo dia agora e o que vamos
fazer?/ Quero voar pra bem longe/ Mas não dá/ Não sei o que pensar e nem o que
dizer/ Só nos sobrou do amor/ A falta que ficou.”
Essa crença em um Brasil digno fica mais evidente na
música que dá nome ao disco. Na letra de “O Descobrimento do Brasil”, é como
se o Renato quisesse descrever um país que pulsa e vive, cheio de gente que
estuda e trabalha, que ganha mal, que se apaixona, que namora, que casa, enfim,
que segue a sua vida comum e deseja ser minimamente feliz. Isso tudo a
despeito do caos social e dos escândalos protagonizados pelas elites políticas: “Ela me
disse que trabalha no correio/ E que namora um menino eletricista/ As famílias
se conhecem bem/ E são amigas nesta vida./ – A gente quer um lugar pra
gente/ A gente quer é de papel passado/ Com festa, bolo e brigadeiro/A gente quer
um canto sossegado/ (...)/ – Estou pensando em casamento/ Ma ‘inda não posso
me casar/ Eu sou rapaz direito/ E fui escolhido pela menina mais bonita.” – pp 214
e 215
-“Pelas conversas e pelas letras que o Renato estava
compondo (“Quando tudo está perdido”, “E essa febre que não passa”), eu fui
percebendo que ele estava sentindo a proximidade do fim. A sua imagem estava cada vez
mais fragilizada, e as notícias trazidas pelo Rafael – que o visitava com mais
frequência – também não eram animadoras. No entanto, eu nunca pensei que o
Renato fosse morrer. No fundo, eu nutria uma esperança, e acreditava que a sua
sentença não fosse irrevogável. A imprensa sempre trazia uma notícia nova sobre
medicamentos contra o HIV – que hoje em dia dão uma resposta
significativa aos soropositivos. O próprio Renato, ainda que disfarçadamente, parecia nutrir
uma pequena expectativa. A mesma letra de “A Via Láctea”, que fala da
tal febre intermitente, diz também que “sempre existe uma luz”. Havia, portanto, uma
chance e certa
esperança.” – p. 232
-“Do Renato, eu sinto muita falta. Ele foi, no cenário
artístico, um personagem muito especial, daquele tipo que, talvez, surja apenas um por
geração, como diz o Gil em seu novo disco: “Aparece a cada cem anos um/ E a cada
vinte e cinco um aprendiz.” Se, em termos de música brasileira, a sua
relevância é incontestável, no âmbito das relações pessoais ela não foi
menor para mim. Desde aquela palheta que eu lhe devolvi no Food’s, até a
última visita em que o vi em seu leito de morte, os momentos que tive com ele foram,
no somatório geral, muito positivos e enriquecedores. Quando o Renato e o Bonfá
me convidaram para fazer parte da banda, acabaram, sem saber, selando o
meu destino. Eu só posso agradecer-lhes. Quando o Renato morreu, e a Legião
acabou, uma parte de mim também ficou para trás. Não somos os mesmos durante a
vida inteira. Em resumo, hoje eu sou muito feliz no que faço, seja
compondo, tocando e cantando, gravando, produzindo. Ao mesmo tempo, eu me
recordo com intensa satisfação da minha época de legionário. Eu sei o lugar da
Legião na minha vida. Fizemos rock. Fizemos história. Não foi tempo perdido.” – p.
255
Os autores:
Dado Villa-Lobos: Eduardo Dutra Villa-Lobos, é um músico
brasileiro nascido na Bélgica, foi guitarrista na banda de rock brasiliense
Legião Urbana, e, é sobrinho-neto do compositor clássico Heitor Villa-Lobos.
Felipe Demier: Desde
2015, é professor do Departamento de Política Social (DPS) da Faculdade de
Serviço Social (FSS) da UERJ. Possui graduação em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2004) e mestrado em História pela Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Romulo Mattos: Bacharel e licenciado (2001) em História pela
Universidade Federal Fluminense, mestre (2004) e doutor (2008) em História
Social pela mesma instituição. Atualmente é professor do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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