"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Poesia a Qualquer Hora (314) - Manuel Bandeira

Cartas de Meu Avô

A tarde cai, por demais 
Erma, úmida e silente... 
A chuva, em gotas glaciais, 
Chora monotonamente. 

E enquanto anoitece, vou 
Lendo, sossegado e só, 
As cartas que meu avô 
Escrevia a minha avó. 

Enternecido sorrio 
Do fervor desses carinhos: 
É que os conheci velhinhos, 
Quando o fogo era já frio. 

Cartas de antes do noivado... 
Cartas de amor que começa, 
Inquieto, maravilhado, 
E sem saber o que peça. 

Temendo a cada momento 
Ofendê-la, desgostá-la, 
Quer ler em seu pensamento 
E balbucia, não fala... 

A mão pálida tremia 
Contando o seu grande bem. 
Mas, como o dele, batia 
Dela o coração também. 

A paixão, medrosa dantes, 
Cresceu, dominou-o todo. 
E as confissões hesitantes 
Mudaram logo de modo. 

Depois o espinho do ciúme... 
A dor... a visão da morte... 
Mas, calmado o vento, o lume 
Brilhou, mais puro e mais forte. 

E eu bendigo, envergonhado, 
Esse amor, avô do meu... 
Do meu, — fruto sem cuidado 
Que ainda verde apodreceu. 

O meu semblante está enxuto. 
Mas a alma, em gotas mansas, 
Chora abismada no luto 
Das minhas desesperanças... 

E a noite vem, por demais 
Erma, úmida e silente... 
A chuva em pingos glaciais, 
Cai melancolicamente. 

E enquanto anoitece, vou 
Lendo, sossegado e só, 
As cartas que meu avô 
Escrevia a minha avó. 

Manuel Bandeira
[ Saiba + ]

Nenhum comentário:

Postar um comentário