Rita Lee –
Uma Autobiografia
Editora: Globo - 294 páginas
Rita Lee Jones, nessa sua autobiografia, nos traz histórias engraçadas, curiosas, sinceras, tristes e peculiares de sua vida tanto pessoal como artística. E conta essas histórias com muito sarcasmo, humor e empatia, desde sua infância, e debocha de tudo e até de si mesma. Lendo, você parece que está escutando ela falar, tão envolvente que são suas histórias. Muito corajosa e sem culpa nenhuma, ela conta tudo ou quase tudo sem nenhum pudor. Fala da participação na banda Tutti-Frutti, na formação dos Mutantes, o casamento tumultuado com Lóki (Arnaldo Baptista ) a quem ela despreza e o chama de farsante; as belas histórias com seus pais (Charles e Chesa) e duas irmãs (Vírginia Lee e Mary Lee ), de uma madrinha (Balú) e uma irmã adotiva italiana (Carú) e de alguns animais de estimação, como uma filhote de onça, onde moravam todos num casarão na Vila Mariana em São Paulo; conta da prisão dela em 1976, durante a ditadura, fala de seus figurinos e faz comentários e revela nuances sobre a composição de suas músicas; o casamento com sua alma gêmea e parceiro musical Roberto de Carvalho, o nascimento dos 3 filhos, a paixão e o ativismo pelos animais... Fala de seus fracassos, devaneios, tropeços, sobre o sucesso e a glória... Está tudo ali, neste belo e bem escrito livro..., e quando esquecia de alguma coisa, o Phanton, um fantasminha, a lembrava no final de cada capítulo... Além destas memórias, o livro traz uma centena de fotos pessoais do acervo da rainha do rock brasileiro...
Além de se tornar um dos títulos mais vendidos do país, o livro coleciona críticas elogiosas. Por causa do livro, Rita foi agraciada pela APCA como melhor autora de 2016 e também pelo Grande Prêmio da Critica, pelos serviços prestados à musica.
Rita é fodástica e fantástica mesmo...
‘Lee’, gostei e recomendo esta excelente autobiografia. Sensacional...
Trechos:
- “Dizem que eu era feliz e sabia, uma infanta normal que passava o dia na minha bem aventurada insignificância, dentro de uma sagrada família onde eu, por tabela, viajava na modernidade das cinco mulheres geniais que me cercavam: Chesa, minha iluminada mãe; Balú, minha fada madrinha; Carú, minha bela irmã adotiva italiana; Mary Lee e Virgínia Lee, minhas duas hilárias manas de sangue. Esse harém desvairado estava sob o comando de Charles, meu pai, 45 anos mais velho que eu, fã de Inezita Barroso, ex-sargento da Revolução de 1932 e provável futuro assassino de Getúlio Vargas.
O extenso porão, que ocupava toda a área do velho casarão dos anos 1920 da rua Joaquim Távora, 670, na Vila Mariana, era o grande palco das idiossincrasias de nossa família “Addams”. Tinha tetos e paredes forrados com desenhos, paisagens, fotos de artistas de cinema e da música, contos de fadas, animais, santos, marcas de produtos, sobras de pano, capas de revistas, mosaicos de louças quebradas, enfim, pensávamos mil vezes antes de jogar qualquer obra de arte no lixo. Esse visual lisérgico era, claro, obra da mulherada quando ainda nem existia televisão. – p. 07
- “Um dia a máquina de costura Singer de Chesa engasgou e veio um técnico da firma. Me contaram que eu brincava no chão da copa enquanto minha mãe mostrava pro cara onde a coisa estava enguiçada. O telefone tocou, ela saiu para atender. Quando voltou, me encontrou sozinha no mesmo lugar, olhando petrificada para o cabo de uma chave de fenda enfiada fundo na minha vagina, de onde escorria uma gosma vermelha. O filho da puta do técnico fez aquilo e sumiu do mapa. Foi o grito alucinante da minha mãe que me tirou do torpor e, vendo ela se desesperar, eu abri o mó berreiro também. Não lembro de ter sentido dor, nem do que aconteceu em seguida, certamente deletei esse capítulo. Só sei que desse dia em diante as mulheres olhavam para mim como a pequena órfã. A dor delas certamente foi muito, mas muito maior do que a minha. Chesa, Balú e Carú guardaram a tragédia como o grande segredo do fim do mundo de todos os tempos. Se meu pai ficasse sabendo, provavelmente iria atrás do sujeito para matá-lo e não seria bom para ninguém o chefe da família ir pra cadeia”. – p. 13
- “Nas férias de julho, a família Buscapé ia a Rio Claro visitar a sede dos Padula. Para nosso alívio, Charles também ficava em Sampa trampando. Dessa vez o harém ia de trem, e a impressão de entrar na majestosa estação da Luz construída pelos ingleses era a de um filme europeu em branco e preto da Segunda Guerra. Tudo para nós era cinema, principalmente na pequena Rio Claro, onde o irmão mais velho de Chesa, tio Nico, além de comandar a alfaiataria Padula, também era dono dos Cines Excelsior e Tabajara. Isso significava que as meninas da Chesa podiam assistir a todas as sessões e ainda encher a cara de drops de anis, tudo grátis! Não bastando tal felicidade, ficávamos todas hospedadas no casarão do vovô Domenico no meio de uma trupe de trocentos tios, tias, primos e primas, todos festeiros e alegres. A mania de forrar paredes e tetos com artistas veio dos italianos, que nesse quesito levavam vantagem com pôsteres e fotos originais distribuídos pela divulgação dos filmes que eram exibidos na cidade. De dois em dois dias mudava a programação. O Excelsior não deixava nada a desejar comparado às salas de São Paulo. Tio Nico era um cinéfilo antenado. Uma única vez fomos passar o Carnaval em Rio Claro, conhecido como um dos mais”. – p. 27
- “Fiquei chapa da família Dias Baptista, a casa deles era muito mais liberada do que a minha. A mãe pianista, o pai cantor amador de ópera e secretário particular do Ademar de Barros, facilitavam a baderna 24 horas por dia, sete dias por semana. Os cinco membros da família sofriam de rinite, respiravam pela boca, babavam muito e cuspiam quando falavam. Arnaldo e Claudio tinham motos e eu meio que remetia essa boyzice deles à Juventude transviada, apesar de Arnaldo ser fisicamente a cara de Sal Mineo e não de James Dean. Economizei uma graninha dando aulas particulares de inglês para crianças e comprei uma Java de segunda mão, tipo moto-lambreta para principiantes, e tentava alcançar os motoqueiros da Pompeia com suas Triumphs. Aos poucos fui me adaptando aos usos e costumes daquela família que, apesar de não ser muito asseada, me tratava bem e cada vez mais fui conhecendo as idiossincrasias deles”. – p. 59
-“ Os baianos estavam no exílio quando os Mutas recebem um convite no mínimo suspeito: abrir um show para Edu Lobo no teatro Villaret, em Lisboa, cujo dono era o humorista Raul Solnado. Seria uma piada? Será que nos confundiram com o mpb4? Pagamos para ver, ou melhor, nos pagaram um cachê ridículo para irmos até lá. Sem problema. Chegando ao hotelzinho que nos hospedaria, demos de cara com a cara fechada de Edu na recepção, que nem nos cumprimentou, afinal, lá estavam os Flying Monkeys frente a frente com o “amigo do Plínio”. Em compensação, sua acompanhante, a bela e esfuziante Scarlet Moon, se enturmou conosco no ato e ainda nos apresentou ao simpático Vinicius de Moraes, bebendo e fumando alegremente na salinha do hotel”. – pp. 89 e 90
-“ Há muito já havia perdoado Loki por ter me expulsado dos Mutas daquela maneira, na verdade deveria agradecer-lhe por me livrar da vergonhosa fase Yes Patropi. Estarei mentindo se disser que depois da minha saída os Mutas não emplacaram uma, enquanto eu acertava todas? I don’t think so (Eu acho que não)
Um dia, Loki toca a campainha do meu sobradinho, magro e deprê, queria entrar para conversar. Contou que pegara uma doença desagradável nos “países baixos” e pediu se poderia pernoitar lá apenas uma noite, que a namorada o botou pra fora e tal. Eu e minha imbecilidade concordamos. Na manhã seguinte, pediu Charles, o Jeep, emprestado, dizendo que ia buscar um instrumento de presente para mim, que queria me compensar pela pindaíba depois que fui saída da banda, que dali meia hora estaria de volta e tal. Lembrei-o da última vez que emprestei e ele sequestrou o anjo do cemitério.
“Juro que agora vou te fazer uma boa surpresa”, prometeu ele. Não voltou. De madrugada telefonou contando que me havia feito um grande favor: jogou Charles contra um muro na descida do Minhocão e o abandonou lá para ser guinchado. Perda total. Uma serra elétrica no coração teria doído menos. Quando meu pai soube do fato se descontrolou, queria sacar o revólver e ir à caça daquele maldito. Acabou tendo um piripaque e foi parar no hospital colocar marca-passo. O nosso querido Jeep Willys capô baixo placa 70050 era parte da família desde 1951, aquele que só faltava assobiar para ligar sozinho e vir feito o cavalo do Zorro”. – pp. 139 e 140
- Roberto, meu amor-perfeito-muso-parceiro, caçula dos três irmãos, filho de Heber e Helyete. Não conheci minha sogra, ela morreu de câncer quando ele tinha cinco anos e logo depois foi adotado pela altiva tia Silvia, irmã mais nova da mãe, que morava num luxuoso apê na Vieira Souto. Contam que Rob aos três anos já arrepiava no piano, o menino sentava no banquinho e de ouvido repetia as músicas que sua mãe acabava de tocar”. – p.161
-“ Hoje, para um artista se dar bem, ele tem que vender a alma ao cartel empresarial, que por sua vez vende a alma ao cartel político, que vende a alma ao cartel da poderosa nova ordem mundial. Muito diabo pra pouco caldeirão”. – p. 184
- “Fuçando gavetas, encontrei um texto escrito numa das vezes em que fui parar num hospício, não lembro qual. “E esse maldito relógio me observando? Cadencia os segundos num volume tão alto que não consigo sair do tempo. E ele me engana. Bato o olhar e lá está 5:30:00. Fecho os olhos. Sinto dores, medito sobre a vida, lembro cenas da infância, rezo, o corpo aprisionado por eletrodos, a bexiga estourando com o soro pingando. Abro os olhos e vejo o desgraçado lá, com cara de pizza, cravando 5:30:01. E ainda pregado torto na parede. O tique-taque dele versus meu toc. Patético. Antes de sair daqui vou amarrar o canalha no trilho de trem que nem Nossa Senhora Desatadora dos Nós pra livrar. Enfermeiras entram e saem do quarto, denuncio a má índole do cara na parede e elas sorriem, imaginando minha abstinência dos tarjas pretas. Não sei quando sairei daqui, o que sei é que você, relógio anticristo, vai morrê ê ê ê! Fique aí se divertindo com minha loucura e prepare-se porque vou estraçalhar seu vidro, torcer seus ponteiros e arrancar seus números a unha. E ao olhar os cacos espalhados pelo quarto, finalmente direi: “Agora vamos ver quem é que manda nessa porra de tempo!” – p. 196
- “Quando eu morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá, colegas dirão que farei falta no mundo da música, quem sabe até deem meu nome para uma rua sem saída. Os fãs, esses sinceros, empunharão capas dos meus discos e entoarão “Ovelha negra”, as tvs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória para exibir no telejornal do dia e uma notinha no obituário de algumas revistas há de sair. Nas redes virtuais, alguns dirão: “Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk”. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los. Enquanto isso, estarei eu de alma presente no céu tocando minha autoharp e cantando para Deus: 'Thank you Lord, finally sedated'” (Obrigada, Senhor, finalmente sedada.) Epitáfio: Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”. – p. 266
A Autora:
Rita Lee Jones, nasceu em São Paulo no dia 31 de dezembro de 1947. Filha do dentista Charles Fenley Jones, um imigrante americano, e da pianista Romilda Pádua Jones. Rita Lee é uma cantora e compositora brasileira. Considerada uma das maiores representantes do Rock no Brasil, ocupa hoje um espaço único no universo da música popular brasileira.Além de sua autobiografia, escreveu quatro livros infantis, entre 1986 e 1992, tendo como protagonista o rato cientista Dr. Alex: Dr. Alex (1986), Dr. Alex e os Reis de Angra (1988), Dr. Alex na Amazônia (1990), Dr. Alex e o Oráculo de Quartz (1992). Em 2013, publicou o livro Storynhas, ilustrado por Laerte e publicou também Dropz (2017) e FavoRita (2018)
Contracapa do livro |
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