"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sutilezas Literárias # 032 - Machado de Assis

(...)
30 de setembro
"Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste mês. Uma novela não permitiria aquela paridade de sucessos. Em ambos esses dias, - que então chamaria capítulos, - encontrei na rua a viúva Noronha, trocamos algumas palavras, vi-a entrar no bonde ou no carro, e partir; logo dei com dois sujeitos que pareciam admirá-la. Riscaria os dois capítulos, ou os faria mui diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais útil que na obra de imaginação. Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma coisa. Os sucessos, por mais que o acaso os taça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.

Dou estas satisfações a mim mesmo, a fim de mencionar o meu joelho doente, tal qual o de Dona Carmo. Outra paridade de situações... Há duas diferenças. A primeira é que nela o mal é puro e confessado reumatismo. Em mim também, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por menos doloroso; é um dos seus modos de amar o patrão. A segunda diferença... 

A segunda diferença, - ai, Deus! a segunda diferença é que, ainda que lhe doa muito o joelho, D Carmo lá tem o marido e os dois filhos postiços. Eu tenho a mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma coisa, - mas fala tarde, pouco e fúnebre. Eu mesmo, relendo estas últimas linhas, pareço-me um coveiro. Mana Rita não me veio visitar, porque não sabe nada, e provavelmente não tem saído; sei que está boa. O meu mal começou há sete dias. Durmo bem às noites, mas não me faz bem andar, dói-me. Amanhã, se não acordar pior, saio.



2 de outubro
Estou melhor, mas choveu e não saí.

3 de outubro
- Foi um duelo entre mim e a velhice, que me disparou esta bala no joelho; uma dor reumática. Já sei que vem jantar comigo?
O desembargador respondeu que não; disseram-lhe que eu estava doente e vinha saber o que era. Dona Carmo também está melhor do joelho, disse-me. Já sai, mas pouco, pela Praia do Flamengo, até à do Russell.
- Sempre com a amiguinha, não?
- Nem sempre; lá tem o seu Tristão que a acompanha de manhã. Fidélia manda-lhe visitas, e pode ser que Aguiar venha cá hoje; souberam ontem, à noite, como eu. Logo depois contou-me Campos que a sobrinha queria ir passar algum tempo à fazenda.
- Os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a deixar o trabalho, e ela quer ver como está aquilo antes de concluir a venda de tudo. Não entendi bem, mas não me cabia pedir explicação. Campos incumbiu-se de me dizer que também ele não entendia bem a ideia da sobrinha, e acrescentou que, por gosto, ela partiria já. A doença de Dona Carmo é que a fez aceitar o que lhe propôs o tio, a saber, que adiassem a viagem para as férias.
- Iremos pelas férias, concluiu ele; provavelmente já o trabalho estará parado de todo; o administrador, que não tem tido força para deter a saída dos libertos até hoje, não terá até então. Fidélia cuida que a presença dela bastará para suspender o abandono.
- Logo, se for mais depressa... aventurei eu, querendo sorrir.
- Foi o argumento dela; eu creio que não será tanto assim, e, como tenho de a acompanhar, prefiro dezembro a outubro. Quer-me parecer que ela teme menos a fuga dos libertos que outra coisa...
Não acabou; levantou-se para consertar um laço da cortina, e voltou coçando o queixo e olhando para o teto. Sentou-se e cruzou as pernas.
Eu, para me não deixar ir a perguntas, peguei do gesto do desembargador, dizendo-lhe que ele acabava de fazer com as pernas o que ainda me custaria um pouco; mas foi como se falasse à cortina, ao laço ou à palhinha do chão. Campos não me respondeu nem provavelmente me ouviu.
Ergueu-se, disse que estimava as minhas melhoras e despediu-se até breve. Teimei que juntasse.
- Não posso; tenho gente de fora; o Tristão janta comigo.Para lhe mostrar que convalescia, fui ao patamar pisando rijo. Agradeci-lhe o obséquio da visita, e tornei à sala, com a viúva diante
dos olhos, caminho da fazenda Mas que terá que a faça ir meter-se na fazenda, com meia dúzia de libertos, se ainda achar alguns? Pouco depois, outra visita, o Aguiar, que me trazia lembranças da mulher.
Estimou ver-me de pé, no meio da sala.
- Não valia a pena, disse-lhe; foi uma coisa de nada, estou quase bom, e hoje mesmo, se a chuva parar, como está querendo, lá vou levá-lo à casa, depois do jantar. Janta comigo?
- Não posso; tenho gente de fora. Uma das pessoas não me impediria, é a Fidélia, que lá janta conosco, e é quase da família. Mas vai também um colega do banco.
- Pois irei tomar chá.
- Vá, se quer, mas não faça isso, é o meu conselho. Ainda que não chova, sempre haverá umidade, e para reumatismo...
- Mas Dona Carmo tem saído, creio.
- Tem, e pode-se dizer que está boa. Apesar disso, já hoje não saiu, por causa do tempo. Vá, se quer; eu no seu caso não saía.
Aguiar não disse mais nada, e despediu-se. Pareceu-me ,ou foi ilusão, que ele queria acrescentar alguma coisa e não acabou de querer. Não sei que seria. Não sentisse eu mesmo algum medo da umidade e iria vê-los à noite, mas a umidade é certa, e creio que a chuva também. Fico em casa. Se aparecer algum enxadrista, jogarei xadrez; se apenas jogar cartas, cartas. Se não vier ninguém, atiro-me a compor um poema de cabeça." (...)

Machado de Assis, em "Memorial de Aires."

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