(...)
"E a caminho do hotel tive minha primeira e peripatética aula de
húngaro, que consistiu em ela dar nome às coisas que eu
apontava: rua, patins, gota d'água, poça, noite, pizzaria, discoteca,
bar, galeria, vitrine, roupa, fotografia, esquina, mercado, bombom,
tabacaria, arco bizantino, balcão art nouveau, fachada neoclássica,
estátua, praça, ponte pênsil, rio, verde-musgo, ladeira, portaria,
lobby, cafeteria, água mineral e Kriska.
Vinha Kriska toda falante, os passos dos patins retinindo na calçada,
os lampejos de letreiros e faróis na cara, mas nem bem nos sentamos
luz chapada da cafeteria do hotel, acendeu um cigarro e emudeceu.
Pudera, aquele era um recinto tão vazio e despojado que depois
de apontar as paredes lisas, a mesa de vidro, a cadeira de
metal, o garçom de branco, a garrafa, o copo, o cinzeiro, o isqueiro,
fogo e o cigarro de marca Fecske, sendo fecske a andorinha
impressa no maço, fiquei sem assunto para puxar. E uma boa
meia hora permanecemos assim, olhando as cinzas no cinzeiro,
porque eu não tinha como apontar as coisas que me passavam pela
cabeça, minha mulher em Londres, as meninas de patins em Ipanema,
a risada fina do meu sócio, o olho azul do meu cliente sem pestanas,
o homem que escrevia em mulheres, os escritores anônimos em
Istambul, as meninas de patins em Ipanema, minha mulher
em Londres. Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo
lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba
sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se
apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo
que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos
outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando
ler seus pensamentos depressa, antes que virassem palavras húngaras.
Aí ela se sacudiu inteira, como num calafrio, fazendo a mochila
escorregar pelas costas, e buscou um cartão de visita, que rabiscou a
lápis e me entregou. E levantou-se e foi-se embora sem se despedir,
deslizando de patins no tapete. Acho que me apeguei àquele silêncio,
e a fim de prolongá-lo me recolhi ao quarto, onde passei o resto da noite
olhando para o teto. Tive um pouco de fome, mas não liguei para a copa,
na Vanda também pensei um pouco, mas não liguei para Londres.
Ao ouvir os sinos da manhã, as portas batendo, bandejas tombando,
vidros se espatifando e camareiras discutindo no corredor peguei
no sono. E dormi doze horas de um sono só, porque agora eu tinha
um pensamento simples. O meu pensamento era um cartão de
visita na mesa-de-cabeceira, impresso com o nome dela,
Fülemüle Krisztina, e o endereço, Tóth utca, 84,17, Ujpest, mais a
anotação do horário das aulas, 20h00 — 22h00, e de uma quantia,
forintes 3000, que como diária me pareceu razoável. Com grande
antecedência tomei um táxi, que me deixou na rua Toth, 84, em
vinte minutos. Deixei passar outros quarenta, parado em frente
ao portão elétrico, para me anunciar no interfone: José Costa.
Era uma vila de casas geminadas, e Kriska me aguardava na
soleira do número sem os patins, ela era quase pequena e menos
menina. Falou Zsoze Kósta... Zsoze Kósta... me olhando de alto a
baixo, como se meu nome fosse um traje inadequado.
Deixei que falasse Zsoze Kósta até se habituar e não corrigi sua
pronúncia, muito menos caçoei de Kriska, antes, dei-lhe razão e
passei a me conhecer por Zsoze Kósta em Budapeste. Logo ela
abandonaria o Zsoze e me chamaria de Kósta, julgando ser esse
meu nome de batismo, que para os húngaros sucede ao sobrenome.
E se fazia chamar de Kriska, como todas as Cristinas húngaras,
Kriska e nada mais. Penso que cedo dispensamos certas
formalidades por eu visitá-la no começo da noite, pegando-as
descompostas, ela e a casa. Muitas vezes, para nos abrir espaço
na mesa de estudos, ela amontoava no canto oposto a toalha
e as louças do jantar recém-terminado. Também às pressas
prendia os cabelos com um elástico no alto da cabeça, e assim
como alguns fios lhe caíam no rosto, pela mesa sempre
sobravam umas migalhas. Sem falar que dia sim, dia não,
o filho dela rondava por ali, mexia nas coisas, ria da minha cara,
não sossegava enquanto Kriska não o despachasse para a cama.
Divertia-se, Pisti, ao ver um homem grande olhando figuras em
álbuns coloridos, um homem gago aprendendo a falar guarda-chuva,
gaiola, orelha, bicicleta. Kêrekport, kêrekpart, kerékpár, mil vezes Kriska
me fazia repetir cada palavra, sílaba a sílaba, porém meu empenho em
imitá-la resultava quando muito num linguajar feminino, não húngaro.
E era escusado ela perder a paciência, morder a língua, derramar o
café, acender cigarros pelo filtro,eu tinha autocrítica; nos primeiros
dias estive mesmo persuadido de que, além de voltar a fumar, nada
assimilaria de suas lições. As aulas me exauriam, ao cabo de duas
horas minha testa latejava, mas nem por isso eu tinha vontade
de voltar para o hotel. Kriska também não me apressava; depois de
guardar os álbuns na mochila, costumava me servir uma taça de licor
de damasco e tratava das tarefas domésticas como se eu não existisse,
ou fosse dacasa, o que dá no mesmo. Levava os pratos para a cozinha,
acionava a lava-louças, batia a toalha na janela, circulava pela sala
com a cabeça torta, o telefone sem fio prensado contra o ombro.
Enchia minha taça sem me olhar, ligava o som baixinho, ia cobrir
o filho e voltava cantando, fechava as venezianas e cantava, ajeitava
o cabelo e cantava. Desconfio que o tempo inteiro estava se
mostrando, como nos álbuns me mostrava estrelas e cavalos, mas
olhando Kriska em movimento eu aprendia mais.
Para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos
os outros. Segui a recomendação de Kriska, exceto por meia
dúzia de palavras em inglês, sem as quais não teria
roupa lavada nem um prato de sopa no quarto do hotel".
(...)
Chico Buarque, em Budapeste.
Editora Companhia das Letras
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