"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sutilezas Literárias # 036 - William Golding

(...)

"Os três meninos andavam vivamente na areia. A maré estava baixa e havia uma faixa de praia salpicada de algas, quase tão firme quanto uma estrada. Uma espécie de encantamento envolvia-os e dominava todo o lugar; eles estavam conscientes desse encantamento e contentes por isso. 

Viravam-se uns para os outros, rindo, excitados, falando, sem ouvir. O ar estava luminoso. Ralph, ante a tarefa de traduzir tudo isso numa explicação, plantou uma bananeira e caiu. Quando pararam de rir, Simon bateu timidamente no braço de Ralph. E eles riram de novo.

- Vamos - disse Jack, - somos exploradores.

- Iremos até o fim da ilha - disse Ralph, - e daremos uma olhada em tudo.

- Se for uma ilha... 

Agora, quase no fim da tarde, as miragens já rareavam. Descobriram o fim da ilha, bem nítido e sem qualquer magia na sua forma ou sentido. Havia uma superfície rochosa com a habitual forma quadrada e um grande bloco entrando água adentro. Havia ninhos de pássaros marinhos ali.

- Parece glacê num bolo cor-de-rosa - disse Ralph.

- Não podemos ver do outro lado - disse Jack, - porque não há outro lado. Só uma curva suave... e vocês podem ver, as pedras ficam mais difíceis... 

Ralph protegeu os olhos com a sombra de uma das mãos e seguiu a linha recortada dos rochedos até a montanha. Essa parte da praia era mais próxima da montanha que qualquer outra que haviam visto.

- Vamos tentar subir a montanha por aqui - disse ele. - Acho que este é o jeito mais fácil. Há menos mata por aqui e mais pedras rosadas. Vamos.

Os três meninos começaram a subir. Alguma força desconhecida rompera e espalhara esses cubos de pedra, que jaziam obliquamente ou empilhados como numa pirâmide. O aspecto mais comum da rocha era um espigão rosado, encimado por um bloco oblíquo que tinha sobre si um outro e mais um, de modo que a massa rosada se tornava um montão de rochas em equilíbrio, projetando-se através da fantasia enredante dos cipós da floresta. Onde os espigões cor-de-rosa se originavam, havia várias trilhas estreitas seguindo para cima. Podiam segui-las, internados no mundo das plantas, rosto contra a rocha. 

- Quem fez esta trilha?

Jack fez uma pausa, enxugou o suor do rosto. Ralph parou ao seu lado, sem fôlego.

- Homens?

Jack sacudiu a cabeça.

- Animais.

Ralph fixou a escuridão sob as árvores. A floresta vibrava levemente.

- Vamos.

A dificuldade não era a subida íngreme pelos contornos da rocha, mas os mergulhos ocasionais na vegetação rasteira, até que se atingia a trilha seguinte. Ali, as raízes e caules das trepadeiras e lianas estavam tão entrelaçados que os meninos tinham de enfiar-se dentre eles, como agulhas flexíveis. Como única orientação, além do chão marrom e esporádicos vislumbres de luz através da folhagem, a tendência da encosta: saber se este buraco, cheio do emaranhado de lianas, era mais alto que o anterior.

Mas avançavam, de qualquer forma.

Murados nessas paredes vegetais, num dos seus momentos mais difíceis, viram Ralph virar-se com os olhos brilhantes.

- Bárbaro!

- Magnífico!

- Sensacional!

A causa daquele prazer não era assim tão evidente: os três estavam acalorados, sujos e exaustos. Ralph arranhara-se para valer. As trepadeiras eram tão grossas quanto as coxas deles e deixavam pouco mais que estreitos túneis para quem quisesse passar. Ralph gritou, para experimentar, e eles ouviram os ecos apagados.

- Isso é exploração de verdade - disse Jack. - Aposto que ninguém esteve aqui antes.

- Deveríamos desenhar um mapa - disse Ralph, - só que não temos papel.

- Podíamos fazer marcas nas cascas de árvores - disse Simon, - e passar alguma coisa escura nelas.

Retornava a solene comunhão de olhos brilhantes na sombra.

- Bárbaro!

- Magnífico!

Não havia lugar para plantar bananeira. Desta vez, Ralph exprimiu a intensidade da sua emoção fingindo querer derrubar Simon; logo, formavam um amontoado feliz e palpitante na semi-escuridão.

Quando se separaram, Ralph falou primeiro.



- Precisamos ir.

O granito rosado do próximo espigão estava mais longe das trepadeiras e árvores, de modo que puderam correr trilha acima. E a trilha levou a uma outra floresta aberta, o que permitiu que vissem o mar. Com a clareira, veio o sol; secou o suor que empapara as roupas no calor escuro e úmido. Pelo menos, o caminho para cima parecia um amontoado de rochas rosadas, sem novos mergulhos nas sombras. Os meninos avançaram através de desfiladeiros e matacões de pedras afiadas.

- Olhem! Olhem!

Neste cimo da ilha, as rochas espalhadas erguiam-se em espigões e chaminés. Aquela em que Jack se encostara mexeu-se com um som rascante, quando empurraram.

- Vamos... 

Mas desta vez o 'vamos' não era para continuar: a subida ao cume podia esperar. Agora os três meninos aceitavam um desafio: a rocha, tão grande quanto um automóvel pequeno.

- Agora!

Para a frente e para trás, para a frente, para trás, ir e voltar contra o ponto de equilíbrio máximo, para a frente, para trás, para a frente, para trás... 

- Agora!

A grande rocha vacilou, oscilou como que na ponta dos pés, decidiu não voltar, moveu-se pelo ar, caiu, arrebentou-se, virou, saltou louca no ar e cavou um profundo buraco na abóbada da floresta. Ecos e pássaros voaram, a poeira branca e rosa flutuou, a floresta lá embaixo tremeu como que à passagem de um monstro enraivecido. E daí voltou a tranqüilidade à ilha.

- Puxa vida!

- Como uma bomba!

- Uuuuaaaau!

Levaram uns cinco minutos até poder esquecer esse triunfo. Mas prosseguiram, afinal. O caminho para o cimo era fácil depois disso. Ao alcançarem a última parte, Ralph parou.

- Nossa!

- Estavam no limite de uma depressão semelhante a um anfiteatro ou semi-anfiteatro, do lado da montanha. Esse anfiteatro estava cheio de uma flor azul, uma planta rochosa de alguma espécie; as flores escalavam rocha abaixo e espalhavam-se abundantemente por entre as copas da floresta. O ar estava coalhado de borboletas alçando vôo, flutuando, descendo. Além do anfiteatro, ficava o cimo quadrado da montanha e logo chegaram ali.

Haviam adivinhado antes que era uma ilha; enquanto avançavam por entre as rochas rosadas, com o mar de um lado ou de outro, sob as alturas cristalinas do ar, souberam instintivamente que o mar estava por todos os lados. Mas parecia que algo lhes dizia da conveniência de deixar a última palavra para quando chegassem ao cimo: e dali, agora, podiam ver um horizonte circular de água. Ralph virou-se para os outros.

- Tudo isso é nosso.

Tinha a forma aproximada de um barco: uma saliência perto desta ponta; por trás deles havia a acidentada descida até a praia. Dos lados, rochedos, espigões, frondes de árvores e uma encosta íngreme: para diante, no corpo do barco, uma descida mais suave, coberta de árvores, com manchas cor-de-rosa: e, então, a selva plana da ilha, um verde denso, terminando numa cauda cor-de-rosa. Ali, onde a ilha penetrava água adentro, havia outra ilha: uma rocha, quase isolada, situada como um forte, defrontava-os através do verde com um bastião escarpado e rosado.

Os meninos examinaram tudo isso, depois olharam mar adentro. Estavam bem no alto e a tarde avançava; a visão não se turvava com nenhuma miragem.

- É um recife. Um recife de coral. Já vi fotos iguais. 

O recife rodeava mais de um lado da ilha, ficando talvez a uns dois quilômetros, paralelo ao que agora consideravam a sua praia. O coral irrompia do oceano como um gigante que se abaixasse para reproduzir a forma da ilha numa vacilante linha de giz, cansando-se antes de acabar. Dentro, a água tinha cor de pavão, rochas e algas surgiam como num aquário; além, o azul-escuro do mar. A maré baixava e compridas esteiras de espuma apareciam a partir do recife; por um instante, eles imaginaram que o barco se movia firmemente, de popa. Jack apontou para baixo.

- Foi ali que aterrissamos.

Além dos desfiladeiros e escarpas, havia uma cicatriz visível nas árvores; ali estavam os troncos destroçados e, depois, a abertura; só ficara uma franja de palmeiras entre o vazio e o mar. Ali, também, salientando-se na lagoa, a plataforma, por onde se moviam figuras parecidas com insetos.

Ralph esboçou uma linha torcida desde a altura em que estavam, percorrendo a encosta, uma picada através de flores, que ziguezagueava e ia até lá embaixo, à rocha que marcava o começo da subida.

- Esse é o caminho de volta mais rápido.

Com os olhos brilhantes, as bocas abertas, triunfantes, saboreavam o direito de domínio. Estavam animadíssimos: eram amigos.

- Não há fumaça de aldeias, nem barcos - disse Ralph com seriedade. - Teremos certeza depois, mas acho que a ilha é desabitada.

- Arranjaremos comida - gritou Jack. - Caçaremos. Pegaremos coisas... até que nos venham buscar. Simon olhou para os dois, sem dizer nada, mas balançando a cabeça, até que seu cabelo preto voasse para trás e para a frente. Seu rosto brilhava.

Ralph olhou para o outro lado, onde não havia recifes.

- É mais íngreme - disse Jack.



Ralph fez um gesto, com as mãos juntas.

- Essa parte da floresta aí embaixo... a montanha é que a segura.

Todas as saliências da montanha tinham árvores - flores e árvores. Agora, a floresta se agitava, rugia, sacudia. As extensões mais próximas das flores rochosas estremeceram e, por meio minuto, a brisa soprou fria nas suas faces.

Ralph abriu os braços.

- Tudo nosso.

Riram, brincaram e gritaram na montanha.

- Estou com fome.

Quando Simon mencionou sua fome, os outros perceberam que também estavam famintos.

- Vamos - disse Ralph. - Já descobrimos o que queríamos saber.

Desceram por uma encosta rochosa, enfiaram-se por entre as flores e avançaram sob as árvores. Então, pararam, para examinar com curiosidade os arbustos ao redor.

Simon falou primeiro.

- Parecem velas. Moitas de velas. Flores de velas.

Os arbustos eram verdes, bem escuros e cheirosos. Muitos dos botões eram de um verde lustroso e se dobravam sob a luz. Jack cortou um com sua faca e o cheiro se espalhou sobre eles.

- Flores de velas.

- Você não pode acendê-las - disse Ralph. - Só parecem velas.

- Velas verdes - disse Jack, desdenhosamente, - não podemos comê-las. Vamos.

Estavam no começo da floresta densa, arrastando os pés cansados por uma trilha, quando ouviram o barulho - guinchos - e o pesado golpear de cascos no chão. À medida que avançavam, os guinchos aumentavam até se tornarem um frenesi. Descobriram um leitãozinho preso numa cortina de cipós, arremetendo contra as lianas elásticas com toda a loucura do terror extremo. Os sons que emitia eram agudos, estridentes, insistentes. Os três meninos correram adiante e Jack tirou outra vez sua faca com um floreio. Levantou o braço. Uma pausa, um hiato, o leitão continuou a gritar e os cipós, a se mexer. A lâmina continuou a brilhar no fim de um braço ossudo. A pausa só foi suficientemente longa para que eles compreendessem que enormidade seria o golpe para baixo. 

Então, o leitão conseguiu escapar dos cipós e desapareceu no mato. Eles ficaram se entreolhando e observando o lugar do terror. O rosto de Jack estava branco sob as sardas. Percebeu que ainda estava com a lâmina pronta e baixou o braço, recolocando a faca na bainha. Então, os três riram, cheios de vergonha, e começaram a voltar para a trilha.

- Eu estava escolhendo um lugar - disse Jack. - Só estava esperando um momento para decidir onde pegar o bicho.

- O porco tem de ser furado - disse Ralph ferozmente. - Sempre falam em furar o porco.

- Tem de se cortar o pescoço do porco para o sangue escorrer - disse Jack, - senão a carne não pode ser comida.

- Por que você não...?

Sabiam muito bem por que não: devido à enormidade da faca descendo e cortando carne viva; devido ao sangue insuportável.

- Eu ia - disse Jack. Estava à frente deles e não se podia ver seu rosto. - Estava escolhendo um lugar. Da próxima vez... 

Tirou a faca da bainha e golpeou um tronco de árvore. Da próxima vez, não haveria mercê. Olhou em volta altivamente, desafiando-os a contradizê-lo. Então, saíram para a luz do sol e, por um instante, ocuparam-se em achar e devorar comida, enquanto desciam a escarpa até a plataforma onde os esperava o grupo." 


William Golding, em "O Senhor das Moscas" - Capítulo I
Tradução: Geraldo Galvão Ferraz - Biblioteca Folha

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