"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Sutilezas Literárias # 038 - Jonathan Swift

(...)
"Aquele dos Liliputianos que não acreditar na providência divina é declarado incapaz de exercer qualquer cargo público. Como os soberanos se julgam, muito justamente, delegados da Providência, os Liliputianos supõem que nada há mais absurdo nem mais incoerente do que o procedimento de um príncipe que se serve de gente sem religião, que nega essa suprema autoridade de que se considera depositário e da qual, de fato, recebe a que possui.

Referindo-me a estas leis e às seguintes, apenas falo das leis originais e primitivas dos Liliputianos. Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíram em um grande excesso de corrupção; prova-o o vergonhoso uso de obter os mais elevados empregos dançando na corda e os lugares de distinção os que saltam à vara larga. Note o leitor que esse indigno uso foi introduzido pelo pai do atual imperador.

Entre aquele povo, a ingratidão é tida como um crime enorme, como em outro tempo o foi, segundo refere a história, aos olhos de algumas nações virtuosas. Dizem os Liliputianos que todo indivíduo que se torna ingrato para com o seu benfeitor, deve ser necessariamente inimigo de todos os outros homens.

Julgam os naturais de Lilipute que o pai e a mãe não devem ser encarregados da educação dos filhos, e há, em todas as cidades, colégios públicos, para onde todos os progenitores, exceto camponeses e operários, são obrigados a mandar os filhos de ambos os sexos, para serem educados e instruídos. Assim que atingem a idade de vinte luas, supõem-nos dóceis e capazes de aprender. As escolas são de diversas espécies, consoante à diferença de sexo ou de sangue. Professores hábeis educam as crianças para um modo de vida conforme a sua ascendência, os seus próprios dotes de espírito e as suas tendências.

Os seminários para os filhos de nobres têm professores sérios e eruditos. O vestuário e subsistência dos rapazes são simples. Inspiram-lhes princípios de honra, de justiça, de coragem, de modéstia, de religião e de amor pela pátria. Até à idade dos quatro anos são vestidos pelos homens; dessa idade em diante, são obrigados a se vestirem sós, embora sejam de nobre estirpe. Só têm licença para brincar na presença do professor e por esse sistema evitam funestas impressões de doidice e de vício que cedo começam a corromper os costumes e as tendências da mocidade. Os pais podem visitá-los duas vezes por ano. A visita pode durar apenas uma hora, com a liberdade de beijar o filho à entrada e à saída; um professor, que assiste sempre a essas visitas, não consente que falem em segredo com as crianças, que as lisonjeiem, nem lhes dêem confeitos ou bolos.

Nos colégios para o sexo feminino, as meninas nobres são educadas quase como rapazes, com uma diferença: é que são vestidas por criadas, mas sempre na presença de uma professora, até que cheguem aos cinco anos, idade em que principiam a vestir-se sem auxílio de ninguém.

Quando se sabe que as aias ou criadas graves entretêm as raparigas com histórias extravagantes, contos insípidos ou capazes de lhes causar medo, (o que é uso corrente das governantas em Inglaterra), são açoitadas publicamente três vezes por toda a cidade, presas durante um ano e por fim exiladas para o ponto mais deserto do país. Assim as raparigas e os rapazes, entre aquele povo, envergonham-se de ser covardes e tolos; desprezam todo o ornamento exterior e só têm em consideração a compostura e o asseio. Os seus exercícios são menos violentos do que os dos rapazes e não as fazem aplicar tanto. Entretanto, aprendem ciências e belas-letras. Há um provérbio que diz que a mulher, devendo ser uma companhia sempre agradável ao marido, carece de ornar o espírito que nunca envelhece.

Ao contrário dos Europeus, os Liliputianos pensam que nada demanda mais cuidado e aplicação do que a educação das crianças. É fácil gerá-las, dizem eles, tão fácil como semear e plantar, mas conservar certas plantas, fazê-las crescer bem, precavê-las contra os rigores do inverno, contra os ardores e tempestades de verão, contra os ataques dos insetos, de, em suma, fazer-lhes dar frutos em abundância, é o resultado da atenção e do cuidado de um hábil jardineiro.

Escolhem o professor que tenha o espírito mais bem formado do que espírito sublime, mais morigeração do que ciência.

Não podem suportar os professores que atordoam incessantemente os ouvidos dos discípulos com gramaticais combinações frívolas, discussões pueris, observações e que, para lhes ensinar a antiga língua, que pouca relação tem com a que se fala hoje, lhes enchem o espírito de regras e exceções e põem de lado o uso e o exercício para lhes atulhar o cérebro de princípios supérfluos e preceitos dificultosos; querem que o professor se familiarize dignamente com os seus alunos, porque não há nada mais contrário à boa educação do que o pedantismo e a fingida seriedade; segundo eles, devem mais baixar-se do que elevar-se perante eles, embora não deixem de o considerar algo difícil, pois que muitas vezes é preciso mais esforço e vigor e sempre mais atenção para descer sem perigo do que para subir.

São de opinião de que os professores devem aplicar-se mais a formar o espírito das crianças para as lutas da vida do que a enriquecê-lo com conhecimentos curiosos, quase sempre inúteis. Ensinam-lhes, pois, logo, a ser prudentes e filósofos, a fim de que, mesmo na idade dos prazeres, saibam gozá-los filosoficamente. Não será ridículo — perguntam eles — só conhecer-lhes a natureza e o verdadeiro uso quando já se encontram inaptos, aprender a viver quando a vida está quase passada e principiar a ser homem quando se está prestes a deixar de o ser? Dão-se recompensas para a confissão sincera e ingênua dos erros, e os que melhor sabem raciocinar sobre os seus próprios defeitos, obtêm honras e mercês. Querem que sejam curiosos e façam amiudadas perguntas acerca de tudo o que ouvem, e são punidos severamente aqueles que, em presença de uma coisa extraordinária e notável, demonstrem pouca admiração ou curiosidade.

Recomenda-se-lhes que sejam muito fiéis, muito submissos, muito dedicados ao príncipe, mas de uma dedicação geral e de dever não particular, que fere muitas vezes a consciência e sempre a liberdade, e que expõe a grandes fatalidades." (...)

Jonathan Swift, em "As Viagens de Gulliver", Capítulo VI 
Tradução de Cruz Teixeira - Livro Digital da Ebooks Brasil

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