Conversa de comadres a espera da morte
Guido Fidelis
— Dona Encarnação melhorou?
— Na mesma.
— Coitada!
— É a vontade de Deus!
— O padre... Já veio?
— Sim. Disse que está encomendada, orações foram feitas, é esperar os desígnios do Senhor para a consumação.
Barulho de xícaras, Dona Conceição, mulher robusta, espécie de líder religiosa, aparece, carrega enorme bandeja de plástico, serve café e torradas, as mulheres se animam, umas dez ou doze, comadres e vizinhas, conversam, fazem indagações, mistérios que precisam ser resolvidos.
Barulho de xícaras, Dona Conceição, mulher robusta, espécie de líder religiosa, aparece, carrega enorme bandeja de plástico, serve café e torradas, as mulheres se animam, umas dez ou doze, comadres e vizinhas, conversam, fazem indagações, mistérios que precisam ser resolvidos.
— Será que ela passa de hoje?
— Não sei... Já é tempo, muita agonia, merece descansar.
— Vamos rezar um terço, pedir para que sua alma ganhe liberdade...
— Sei de um remédio infalível.
— Pra quê?
— Pra morte, ora.
— Acha que ela pode melhorar?
— Não, não é isso.
— O que, então?
— Para puxar a morte, chamar a morte, abreviar, sabe como é.
— Sei não.
— Minha mãe sempre contava. Pessoas que estão na pior, querem a morte, que ela apresse o trabalho para acabar logo a agonia. Melhor que ficar na dor...
— Minha mãe sempre contava. Pessoas que estão na pior, querem a morte, que ela apresse o trabalho para acabar logo a agonia. Melhor que ficar na dor...
— Credo!
— Deus me livre!
— Virgem Maria!
— Como é?
— Fácil.
— Conta.
— Velhos escravos usavam o método, infalível, minha querida.
— Pecado mortal.
— Bruxaria.
— Crime.
— A gente pode acabar na cadeia.
— Não é crime.
— Vai dar veneno?
— Cuidado, ela guarda um revólver na gaveta, preto, feio, já vi.
— Nada disso.
— O que é, então?
— Apenas abrir as portas para a morte. Ela entra devagar, suave, termina e vai embora, como passarinho.
— De que jeito?
— Silêncio que eu conto tudinho.
As mulheres se aquietam. Dona Carola abre a janela, espreita, não quer nenhum espião rondando, grita com o menino que urina na parede:
As mulheres se aquietam. Dona Carola abre a janela, espreita, não quer nenhum espião rondando, grita com o menino que urina na parede:
— Caia fora, seu peste!
O menino ri, faz careta, mostra a língua, balança o pau e o ombro, permanece. Dona Carola fecha a janela, está sem jeito, senta-se para ouvir a explicação de Dona Terezinha, mulher prática, que já participou de mais de uma centena de velórios, lavou e trocou cadáveres, não se impressiona mais com o hálito da morte.
— A gente dá um banho em Dona Encarnação, que fica preparada para o grande encontro. Bota uma roupa branca, lembrança dos tempos de virgindade, que é pureza de alma...
— Mas ela nunca foi tão pura...
— Verdade?
— Lógico, comadre, você nunca soube?
— Não. Conte!
— Depois, deixe Dona Terezinha explicar...
— Não, não, fale primeiro.
— Será?
— Conte, vá! — Não seja chata.
— Aguça a curiosidade da gente...
— Bem...
Dona Frutuosa sorri, deixa em destaque a boca, grande, tinta de batom, arranha a garganta com o pigarro, acende o cigarro sem filtro, encara as amigas, segreda:
— Juro, juro por esses olhos..
— Não precisa, vamos, conte.
— Isso mesmo, fale logo.
— Não aguento esperar.
— Sabe... fraquezas... todas nós temos nossos momentos, foi há muito tempo, ela era casada, antes de enviuvar-se, o marido saía para trabalhar, como todos os maridos que se prezam e que se levantam cedo, ela ficava sozinha, solitária, sem filhos, sabe, é duro ficar olhando as paredes limpas, vinha o entregador de jornal e entrava, ficava umas duas horas e se mandava, sabe lá Deus o que aprontavam na cama, ouvi dizer que o rapaz era fogo, também, em plena juventude...
— Não pode ser.
— Incrível.
— Mas é a verdade. E tem mais. Deu também uns pulos com o sonso do seu Joaquim, aquela cara de desentendido, sempre a errar nas contas, a seu favor, lógico, que não é besta de voltar troco a mais.
— Quem diria!
— Aquela expressão de santa nunca me enganou.
— Deixa pra lá, é perigoso cuspir pra cima, muitas outras mulheres do bairro também tiveram suas aventuras. Sei de muitas, tantas...
Tosses, barulho de xícaras, inquietação, clima tenso, volta o silêncio, as mulheres acham que é melhor que Dona Terezinha conclua sua explicação a respeito do método infalível, descoberta de velhos escravos, para invocar a morte na agonia, acabar com o sofrimento. Dona Terezinha sente súbito alívio, como se colocasse o rosto úmido de suor debaixo da torneira e sentisse a água fria refrescar o calor da pele.
— Certo, certo. Como dizia, a gente ajeita Dona Encarnação, que fica à espera do abraço da morte, em nome de Deus todo-poderoso e da Santíssima Virgem Maria.
— Será que não vamos ter remorsos depois?
— Não. Já ajudei muitas pessoas. É ato piedoso.
— Está bem, então conte logo.
— Ela fica estendida na cama, lamparina de óleo acesa no oratório para iluminar o caminho, azeite bento, basta quebrar três ovos, retirar as claras e passar na fronte, é um remédio santo, o caminho lubrificado se abre, florida avenida, a morte penetra leve, no silêncio, e a alma se liberta da prisão, transforma-se em luz.
— Oh! — Belo, muito belo!
— Pai nosso.
— Piedade, Deus!
As mulheres trocam olhares, há clima de angústia, decisão difícil, escolha do método, mais difícil que a escolha do caixão, a funerária apresenta várias sugestões, modelos de luxo, de primeira, de segunda... Uma delas levanta questão de vital importância:
— Dona Encarnação é uma pessoa solitária, não teve filhos, o marido morreu, não tem parente, ao que consta. Bem... recebe pensão... possui outros bens... E... isso... nós teremos de arcar com as despesas do enterro.
— É mesmo.
— Puxa! — Não tinha pensado.
— Diabo. — Custa caro?
— Tenho solução... vocês vão achar justo...
— Qual é?
— Que tal se fizéssemos uma distribuição, entre nós, dos objetos de Dona Encarnação? Penso que ela ficaria feliz, nós, suas amigas, guardando as melhores recordações...
— Apoiado.
— Aprovado.
— Não há mal nenhum.
— Será que não dá galho?
— Que nada. — Melhor nós que o governo, que fica com tudo.
— Então...
— Apenas os bens e o dinheiro que está na caixinha.
— Que caixinha?
— Uma de madeira que ela guarda na gaveta do guarda-roupa, sabe, fui pegar uma muda de roupa e achei, deve ter uns quarenta mil, a gente retira mil para o enterro e pronto...
— Muito justo.
— Em parcelas iguais.
— Os bens, de acordo com a predileção, sei que comadre Carola sempre cobiçou as sapatas de prata...
— Não é bem assim, apenas gosto delas, são lindas!
— Dona Terezinha fica com os castiçais de estanho...
— Obrigada.
— Para Dona Conceição, que gosta de cozinha, o faqueiro e o jogo de chá.
— Perfeito.
— O rádio, o liquidificador, o anel de pedra preta...
Os bens, inventariados, foram distribuídos e repartidos em igualdade fraterna, perfeito socialismo entre as mulheres, todas pertencentes à Irmandade de Santo Antônio, benemérita medida, afinal, sendo só, melhor que os haveres fiquem com elas, a casa será fechada mesmo. Decidido o destino de todas as posses as mulheres resolveram anuir, preparam-se para abrir o caminho para a morte. Barulho no quarto. Sobressaltam-se, pode ser ladrão, o diabo, o padre, alguém pode ter ouvido a conversa. Dona Encarnação aparece, como se tivesse regressado do inferno, olhos parados, fixos:
— Fora, fora suas vagabundas, ainda vou enterrar muitas de vocês...
Este texto foi publicado no Livro - "Pra Gostar de Ler - Volume 27 -
Histórias Sobre Ética" - Editora Ática - páginas: 59 à 65
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