"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Conversa de Comadres a Espera da Morte, de Guido Fidelis

Conversa de comadres a espera da morte
Guido Fidelis


— Dona Encarnação melhorou? 
— Na mesma.
— Coitada! 
— É a vontade de Deus!
— O padre... Já veio? 
— Sim. Disse que está encomendada, orações foram feitas, é esperar os desígnios do Senhor para a consumação.

 Barulho de xícaras, Dona Conceição, mulher robusta, espécie de líder religiosa, aparece, carrega enorme bandeja de plástico, serve café e torradas, as mulheres se animam, umas dez ou doze, comadres e vizinhas, conversam, fazem indagações, mistérios que precisam ser resolvidos.

— Será que ela passa de hoje?
— Não sei... Já é tempo, muita agonia, merece descansar.
— Vamos rezar um terço, pedir para que sua alma ganhe liberdade...
— Sei de um remédio infalível.
— Pra quê?
— Pra morte, ora.
— Acha que ela pode melhorar?
— Não, não é isso. 
— O que, então?
— Para puxar a morte, chamar a morte, abreviar, sabe como é. 
— Sei não.
— Minha mãe sempre contava. Pessoas que estão na pior, querem a morte, que ela apresse o trabalho para acabar logo a agonia. Melhor que ficar na dor...
— Credo! 
— Deus me livre! 
— Virgem Maria! 
— Como é? 
— Fácil.
— Conta. 
— Velhos escravos usavam o método, infalível, minha querida. 
— Pecado mortal. 
— Bruxaria. 
— Crime. 
— A gente pode acabar na cadeia.
— Não é crime. 
— Vai dar veneno? 
— Cuidado, ela guarda um revólver na gaveta, preto, feio, já vi. 
— Nada disso.
— O que é, então? 
— Apenas abrir as portas para a morte. Ela entra devagar, suave, termina e vai embora, como passarinho. 
— De que jeito? 
— Silêncio que eu conto tudinho.

As mulheres se aquietam. Dona Carola abre a janela, espreita, não quer nenhum espião rondando, grita com o menino que urina na parede:

 — Caia fora, seu peste!

O menino ri, faz careta, mostra a língua, balança o pau e o ombro, permanece. Dona Carola fecha a janela, está sem jeito, senta-se para ouvir a explicação de Dona Terezinha, mulher prática, que já participou de mais de uma centena de velórios, lavou e trocou cadáveres, não se impressiona mais com o hálito da morte.


 — A gente dá um banho em Dona Encarnação, que fica preparada para o grande encontro. Bota uma roupa branca, lembrança dos tempos de virgindade, que é pureza de alma... 
— Mas ela nunca foi tão pura... 
— Verdade? 
— Lógico, comadre, você nunca soube? 
— Não. Conte!
— Depois, deixe Dona Terezinha explicar...
— Não, não, fale primeiro. 
— Será? 
— Conte, vá! — Não seja chata. 
— Aguça a curiosidade da gente...
— Bem... 

Dona Frutuosa sorri, deixa em destaque a boca, grande, tinta de batom, arranha a garganta com o pigarro, acende o cigarro sem filtro, encara as amigas, segreda: 

— Juro, juro por esses olhos..
— Não precisa, vamos, conte. 
— Isso mesmo, fale logo. 
— Não aguento esperar. 
— Sabe... fraquezas... todas nós temos nossos momentos, foi há muito tempo, ela era casada, antes de enviuvar-se, o marido saía para trabalhar, como todos os maridos que se prezam e que se levantam cedo, ela ficava sozinha, solitária, sem filhos, sabe, é duro ficar olhando as paredes limpas, vinha o entregador de jornal e entrava, ficava umas duas horas e se mandava, sabe lá Deus o que aprontavam na cama, ouvi dizer que o rapaz era fogo, também, em plena juventude... 
— Não pode ser. 
— Incrível. 
— Mas é a verdade. E tem mais. Deu também uns pulos com o sonso do seu Joaquim, aquela cara de desentendido, sempre a errar nas contas, a seu favor, lógico, que não é besta de voltar troco a mais. 
— Quem diria! 
— Aquela expressão de santa nunca me enganou. 
— Deixa pra lá, é perigoso cuspir pra cima, muitas outras mulheres do bairro também tiveram suas aventuras. Sei de muitas, tantas... 

Tosses, barulho de xícaras, inquietação, clima tenso, volta o silêncio, as mulheres acham que é melhor que Dona Terezinha conclua sua explicação a respeito do método infalível, descoberta de velhos escravos, para invocar a morte na agonia, acabar com o sofrimento. Dona Terezinha sente súbito alívio, como se colocasse o rosto úmido de suor debaixo da torneira e sentisse a água fria refrescar o calor da pele. 

— Certo, certo. Como dizia, a gente ajeita Dona Encarnação, que fica à espera do abraço da morte, em nome de Deus todo-poderoso e da Santíssima Virgem Maria.
— Será que não vamos ter remorsos depois?
— Não. Já ajudei muitas pessoas. É ato piedoso.
— Está bem, então conte logo.
— Ela fica estendida na cama, lamparina de óleo acesa no oratório para iluminar o caminho, azeite bento, basta quebrar três ovos, retirar as claras e passar na fronte, é um remédio santo, o caminho lubrificado se abre, florida avenida, a morte penetra leve, no silêncio, e a alma se liberta da prisão, transforma-se em luz.
— Oh! — Belo, muito belo! 
— Pai nosso. 
— Piedade, Deus!

 As mulheres trocam olhares, há clima de angústia, decisão difícil, escolha do método, mais difícil que a escolha do caixão, a funerária apresenta várias sugestões, modelos de luxo, de primeira, de segunda... Uma delas levanta questão de vital importância:

 — Dona Encarnação é uma pessoa solitária, não teve filhos, o marido morreu, não tem parente, ao que consta. Bem... recebe pensão... possui outros bens... E... isso... nós teremos de arcar com as despesas do enterro.
— É mesmo. 
— Puxa! — Não tinha pensado.
— Diabo. — Custa caro? 
— Tenho solução... vocês vão achar justo...
— Qual é?
— Que tal se fizéssemos uma distribuição, entre nós, dos objetos de Dona Encarnação? Penso que ela ficaria feliz, nós, suas amigas, guardando as melhores recordações... 
— Apoiado.
— Aprovado. 
— Não há mal nenhum. 
— Será que não dá galho?
— Que nada. — Melhor nós que o governo, que fica com tudo.
— Então...
— Apenas os bens e o dinheiro que está na caixinha.
— Que caixinha?
— Uma de madeira que ela guarda na gaveta do guarda-roupa, sabe, fui pegar uma muda de roupa e achei, deve ter uns quarenta mil, a gente retira mil para o enterro e pronto...
— Muito justo. 
— Em parcelas iguais. 
— Os bens, de acordo com a predileção, sei que comadre Carola sempre cobiçou as sapatas de prata... 
— Não é bem assim, apenas gosto delas, são lindas!
— Dona Terezinha fica com os castiçais de estanho... 
— Obrigada. 
— Para Dona Conceição, que gosta de cozinha, o faqueiro e o jogo de chá.
— Perfeito.
— O rádio, o liquidificador, o anel de pedra preta...

 Os bens, inventariados, foram distribuídos e repartidos em igualdade fraterna, perfeito socialismo entre as mulheres, todas pertencentes à Irmandade de Santo Antônio, benemérita medida, afinal, sendo só, melhor que os haveres fiquem com elas, a casa será fechada mesmo. Decidido o destino de todas as posses as mulheres resolveram anuir, preparam-se para abrir o caminho para a morte. Barulho no quarto. Sobressaltam-se, pode ser ladrão, o diabo, o padre, alguém pode ter ouvido a conversa. Dona Encarnação aparece, como se tivesse regressado do inferno, olhos parados, fixos:

 — Fora, fora suas vagabundas, ainda vou enterrar muitas de vocês...


Este texto foi publicado no Livro - "Pra Gostar de Ler - Volume 27 -
Histórias Sobre Ética" - Editora Ática - páginas: 59 à 65

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