"Envolvido com felinos Max sempre esteve, de um modo ou de outro. Nascido em Berlim, em 1912, era filho de peleteiro e cresceu entre peles; e destas, as que mais apreciava eram as de leopardo, infelizmente raras na loja do pai, um pequeno estabelecimento situado num bairro não muito bem conceituado de Berlim. Ali vinham bater principalmente refugos: raposas de pedigree duvidoso, minks encontrados mortos sobre a neve, martas rejeitadas por outros peleteiros. E até mesmo – mas disto não se falava em família, era assunto tabu – o coelho tinha sua vez nos casacos vendidos às clientes mais tolas. Como negociante, e como pessoa, Hans Schmidt não era um tipo refinado. Atarracado como um urso, era veemente demais no exaltar a qualidade de sua mercadoria; ficava vermelho, berrava, salpicava de perdigotos a cara dos clientes; e em casa, entre uma colherada e outra da sopa ruidosamente sorvida, gabava-se à mulher e ao fi lho de já ter enganado muitos trouxas na vida. Ouviam-no em silêncio, Max e a mãe. Erna Schmidt era exatamente o oposto do marido, uma mulher pequena e tímida, sensível, não desprovida de certa cultura. Na adolescência, desejara ser declamadora; e à noite, em meio a confusos sonhos, recitava em voz alta versos de Goethe e de Schiller. O marido acordava-a a safanões: não posso dormir, gritava, por causa das tuas loucuras. Erna jamais reagia à brutalidade do marido; mas às vezes, enquanto estava contando uma história ao fi lho, interrompia-se de súbito e abraçava-se a ele aos prantos. Tudo isto causava desgosto ao Max, que herdara da mãe a sensibilidade quase doentia. Tanto desgosto quanto prazer lhe traziam as peles. Desde criança habituara-se a procurar refúgio no depósito da loja, um aposento de dimensões reduzidas que recebia um pouco de luz e ventilação através de uma janelinha guarnecida de grossas barras de ferro. Naquele lugar Max sentia-se feliz. Gostava de enfiar o rosto nas peles, principalmente (e isto veio depois a se revelar irônico) nas de felino. Estremecia de esquisita emoção ao lembrar que aquela pele um dia recobrira o corpo de um elegante animal que correra pela África atrás de gazelas. Apenas o despojo do bicho? Sim. Para Max, contudo, era como se a fera estivesse ali, viva. E havia o tigre, naturalmente, o que dava o nome à loja: Ao Tigre de Bengala. O animal tinha sido abatido pelo próprio Hans Schmidt, numa via gem que fi zera à Índia com o Clube dos Caçadores – uma aventura cuja descrição produzia no menino Max excitação, claro, mas sobretudo um mal-estar quase intolerável. A Índia, nas grosseiras, jocosas palavras do pai, era um lugar sujo, cheio de nativos esqueléticos, os chamados intocáveis. Para ele a única coisa que valera a pena, na viagem, fora a caçada ao tigre, que descrevia com profusão de detalhes. Falava da floresta impenetrável, dos ruídos misteriosos da noite, da tensa expectativa com que os caçadores, encarapitados em plataformas sobre árvores, aguardavam o tigre. E de repente a fera surgindo na clareira, o tiro certeiro – o tiro dele, Hans Schmidt – e ali estava, sobre o armá rio, o bicho, empalhado. Excelente trabalho, aliás, fi zera o empalhador. Deixara o couro quase intacto, a marca da bala mal sendo notada. Pela bocarra extraíra as vísceras, substituindo-as por estofo do melhor. Os olhos eram de vidro, mas perfeitos. A certa incidência de luz reluziam com um brilho feroz, o brilho que Max não via nos tigres do zoo, animais aliás velhos, conformados ao cativeiro. Desde muito pequeno Max tinha medo do tigre, um medo que chegava a dar-lhe pesadelos. Acordava à noite gritando, para desespero da mãe, que, além de todos seus problemas, sofria de asma e conhecia os pavores da noite. Hans Schmidt zombava dos temores do fi lho e não perdia ocasião para espicaçá-lo: covarde, não passas de um covarde. Uma noite, após o jantar, ordenou-lhe que fosse à loja, buscar um jornal supostamente lá esquecido. Max, então com nove anos, levantou objeções – o frio intenso, a escuridão – mas o pai, irritado, disse que deixasse de ser medroso e que fosse de uma vez. Erna pôs-se a chorar, pediu ao marido que pelo amor de Deus não fizesse aquilo com a criança. Max assistia à discussão, sentado, hirto. De 44 súbito levantou-se, e, sem nenhuma palavra, pegou o casaco e saiu. Ia para a loja. Caminhou apressado por ruas desertas. Ao dobrar uma esquina, deu com um grande grupo de pessoas que avançava pelo meio da rua, carregando tochas e cantando hinos: uma passeata dos socialistas. Os manifestantes avançavam lentamente; um lhe fez sinal para que viesse também. De repente, tropel de patas: policiais montados investiam contra os manifestantes, sabres desembainhados. Na confusão, Max viu um homem tombar, o crânio partido por uma es padeirada. Apavorado, correu para a loja, que fi cava perto. Tremia tanto que mal conseguiu enfiar a chave na porta; finalmente entrou, escondeu-se atrás de um manequim e ali ficou, no escuro, os dentes chocalhando. Aos poucos, os gritos foram cessando. A rua ficou em silêncio. Max mirava fixo o tigre. Ali estava ele, em cima de seu armário, os olhos – quando os faróis de um carro iluminavam o interior da loja – reluzindo com um brilho sinistro. Entre os dois, entre o menino e a fera, o balcão, e sobre este, o jornal. O jornal que Max jamais conseguiria alcançar; não, pelo menos, enquanto estivesse paralisado pelo medo, um medo como jamais sentira antes. Um medo humilhante e também uma surda e contida revolta. Para que precisava o pai do jornal? Que notícias tão importantes tinha de ler? Por que – e as lágrimas lhe corriam pelo rosto – era tão cruel com o filho, o único filho?" (...)
Moacyr Scliar, em "Max e os Felinos" -
Capítulo "O Tigre Sobre o Armário" - páginas 41 a 44 - Editora L&PM
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