"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Todos somos culpados com o fim da caridade, de Arnaldo Jabor

Todos somos culpados com o fim da caridade

Arnaldo Jabor
A esmola

"Olho para o menino parado no farol de trânsito que vem em minha direção e pede esmola. Eu preferiria que ele não viesse. Não que ele seja agressivo, mas ele é sujo e sua roupinha está rasgada. Se ao menos ele viesse sozinho, seria mais suportável; ele deve ter uns doze anos e, no colo, carrega o irmãozinho, de sue dois anos. Ou seja, um menino miserável de doze anos leva outro como isca para me emocionar e tirar a minha esmola. Ao longe, na calçada, vejo a mãe do menino, esperando o efeito da cena, esperando o lucro da cena.
É um comércio, como uma exibição de cinema ou como uma peça de teatro. Assim como, digamos, Tenesse Williams quer arrancar emoção, a mãe-dramaturga também quer a empatia e, se possível, ter um sucesso de bilheteria: muitas esmolas.

Há certos mendigos que são sucesso de bilheteria; outros não mexem conosco e são fiascos.

O menino maior (o menor dorme no colo) se comporta como um bom ator. Sua vozinha é treinada com um tremolo de desespero e procura olhar bem no fundo de meus olhos, se bem que eu evite olha-lo. Sucesso! Sou tomado por uma funda emoção (coisa rara, porque tenho me esforçado para não me deixar levar por sentimentos baratos). Mas, como é uma criança carregando outra (bom script: o frágil protegendo o frágil), vêm lágrimas em meus olhos, lágrimas que eu escondo, evidentemente, para que o menino não veja. Enquanto seco meus olhos voltado para outro lado, o menino insiste na janela do carro. Por alguns segundos sou grato ao menino, pois sua imagem com o bebê me deu a rara benção, a boa fortuna de uma emoção humanitária. Por instantes eu gozo aquela alegria como uma sorte grande. Eu me sinto feliz por ser tão bondoso e me consolo por ser um homem sensível. Meu primeiro impulso é dar um dinheirão ao menino, mas logo me controlo para não ceder ao óbvio e apenas dou a esmola normal, sem olhar para o garoto, que no entanto me olha sem parar. Sua mãe me olha a distância também. Mas eu não olho para eles. Porque esta dissincronia de olhares? A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. Não olho para não sentir culpa, ou para não ferir o meu universo estético em que a miséria é um fator de desarmonia. A miséria não é plástica. A miséria nos lembra que desgraça existe, e que, por conseguinte, a morte também existe. Como quero esquecer a morte, não olho o menino.

Assim que dou o dinheiro ao menino, sou tomado por um ódio terrível ao estado de coisas, tenho um tremor meio histérico contra a situação brasileira, contra os políticos, contra os ricos (mais do que eu). Acelerando o carro vejo que a indignação me enobrece e me faz atacar vagos personagens que formam uma alegoria do mal, um difuso conjunto de latifundiários, milionários, carrascos egoístas, etc. Aos poucos me acalmo, enquanto o carro rola. Eu saio lucrando com a esmola, pois estou apaziguado, cumpri meu dever, me sinto legal, pois paguei um pedágio ao miserável por ter carro, comida e casa. Foi bom para mim aquele miserável. Assim, a miséria cumpriu uma função estabilizadora das regras sociais. A esmola que dei me consola mais do que o mendigo. Também permite que eu me exclua da injustiça social, já que eu me indigno. Assim, a injustiça é feita por outros, por eles, pessoas sem rosto que são culpadas por tudo. O mundo é mau, mas eu estou fora; isto é um affair mal resolvido entre aquele garoto mendigo e os malvados do mundo. Assim, a caridade me faz bem, mais do que o garoto que leva aquela mixaria que eu dei. A miséria mantém o mundo funcionando apesar de sujar a paisagem."
*
O assalto

"Outro cenário seria o do assalto. Estou no carro no mesmo lugar e um garotão ou dois metem um revólver na cara e me levam o relógio, a carteira, talvez o carro e talvez me matem. Excluamos a morte, para sentirmos o after-taste, o arriére-gout, o prazer do assalto.

Primeiro o assalto inverte a posição. Eu sou a vítima, não o esmoler. A pobre pessoa sou eu, num primeiro instante. Cheio de medo, tenho de soltar a grana para não morrer. O assalto é a esmola ao contrário; você recebe a graça de viver, se for humilde. Eles é que dão a esmola.
Além disso, o assalto desconstrói terrivelmente o meu universo. A pobreza perde sua face milenarmente doce e triste e ganha a face da vingança. A injustiça social que se abatia sobre eles é desviada sobre você. Você passa a ser vítima de uma injustiça social. E, mais terrível, aqueles pobres-diabos que tinham a missão de manter a sociedade funcionando na injustiça eterna se rebelam e parecem mudar a face do mundo. Há um sabor de sacrilégio no assalto. O assalto não te exclui. Ele te inclui. Você é o culpado de ter coisas, não os outros, os tais outros malvados. No assalto você é vítima e culpado. Isso provoca um sentimento de confusão no mundo. Mais ainda se você for metido a progressista, a amante dos pobres oprimidos, um petista talvez. Nada pior que um petista sendo assaltado.
E aí começa um processo de inclusão em você, de incriminação, em que você é uma peça deste complexo micro-macro de injustiças, que começa talvez no capitalismo de Nova York e acaba ali no teu relógio. Retraçando o mapa, vemos que o teu Rolex foi comprado com o dinheiro que teu pai deixou da fazenda que o avô vendeu para pagar o banco que etc.. etc... e daí vai-se numa linha genealógica de dinheiro que acaba te remetendo ao mundo dos exploradores.
Não há remissão no assalto. Além de te levar a grana, a culpa é tua. Com o fim do mundo da caridade, todos ficam suspeitos, todos incluídos no crime e a guerra começa para todos. Ficam visíveis relações finíssimas: no esgar da cara de um burguês nordestino se vê a seca desenhada como uma tatuagem; na barriga de um político ou num bigode se vêem anos de corrupção. O fim da caridade é útil. Acabou o mundo do escândalo bondoso e vai começar o mundo da violência. E através dos olhos furiosos dos marginais a cara verdadeira do Brasil aparecerá. Nunca quisemos ver a miséria, agora não há outro jeito. Quando ainda dava tempo, e havia dinheiro para consertar, não fizemos nada-há uns trinta anos. Agora é tarde demais; iremos correndo atrás do social (como se houvesse algo fora) para ver se ainda dá para quebrar um galho paliativo, cestas básicas, reforminhas, etc...mas não dará mais tempo. E como o país é um enigma político-secular, com um jogo de poder onde não se consegue consenso nunca (vejam o inferno de partidarismos que não aprovam nada nunca), teremos finalmente o social desencadeado. Vai acabar a ópera-bufa e começar a tragédia. O FACISMOZINHO CABOCLO VAI COMEÇAR E CRIAR FORMAS NOVAS DE EXTERMÍNIO. ESTÁ SENDO CHOCADO O OVO DA JIBOIA, QUE CULMINARÁ NUMA DITADURA."

Esta crônica foi extraída do livro: "Os Canibais estão na Sala de Jantar" - Arnaldo Jabor -
Editora Siciliano

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