"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

sexta-feira, 24 de março de 2017

Poesia a Qualquer Hora (282) - Jorge de Sena

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças, 
como sereis cruéis, como sereis injustas? 

Quem torturais, quem perseguis, 
quem esmagais vilmente em ferros que inventais, 
apenas sendo vosso gemeria as dores 
que ansiosamente ao vosso medo lembram 
e ao vosso coração cardíaco constrangem. 

Quem de vós morre, quem de por vós a vida 
lhe vai sendo sugada a cada canto 
dos gestos e palavras, nas esquinas 
das ruas e dos montes e dos mares 
da terra que marcais, matriculais, comprais, 
vendeis, hipotecais, regais a sangue, 
esses e os outros, que, de olhar à escuta 
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos, 
vos contemplam como coisas óbvias, 
fatais a vós que não a quem matais, 
esses e os outros todos... - como sereis cruéis, 
como sereis injustas, como sereis tão falsas? 

Ferocidade, falsidade, injúria 
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso 
o coração que apavorado em vós soluça 
a raiva ansiosa de esmagar as pedras 
dessa encosta abrupta que desceis. 
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo. 

Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos? 
Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena

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