"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Sutilezas Literárias # 015 - Jorge Amado

(...)
"O Professor acabou o desenho (no qual pôs o carrossel e Nhozinho
França caindo de bêbado) e deu ao padre. Estavam todos num 
cerrado espiando o desenho, que o padre elogiava, quando ouviram:
-- Mas é o padre José Pedro... 
E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma 
de guerra. O padre José Pedro ficou meio sem jeito, os meninos 
olhavam com curiosidade os ossos do pescoço e do peito da velha 
onde um barret custosíssimo brilhava à luz do sol. 
Houve um momento em que todos ficaram calados, até que o 
padre José Pedro animou e disse: 
-- Boa tarde, dona Margarida. 
Mas a viúva Margarida Santos assestou 
novamente o lorgnon de ouro. 
-- O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? 
Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade 
no meio desta gentalha... 
-- São crianças, senhora. 
A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca.
O padre continuou: 
-- Cristo disse: 'Deixai vir a mim as criancinhas...' 
-- Criancinhas... Criancinhas... -- cuspiu a velha. 
-- Ai de quem faça mala uma criança, falou o Senhor -- e o padre
José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha. 
-- Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões. Isso não são
crianças. São capazes até de ser dos Capitães da Areia... 
Ladrões -- repetiu com nojo. 
Os meninos a fitavam com curiosidade. Só o Sem-Pernas, que tinha
vindo do carrossel pois, Nhozinho França já voltara, a olhava com raiva. 
Pedro Bala se adiantou um passo, quis explicar: 
-- O padre só quer aju... 
Mas a velha deu um repelão e se afastou. 
-- Não se aproxime de mim, não se aproxime de mim, imundície. 
Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda. 
Pedro Bala aí riu escandalosamente, pensando que se não fosse
pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon.
A velha se afastou com um ar de 
grande superioridade, não sem dizer es para o padre José Pedro: 
-- Assim o senhor não vai longe, padre. Tenha mais cuidado com
suas relações. 
Pedro Bala ria cada vez mais, e o padre também riu, se bem sentisse
triste pela velha, pela incompreensão da velha. Mas o carrossel 
girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos 
Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo 
de ar nos cavalos, de girar com as luzes. Eram crianças, sim 
-- pensou o padre. 
No começo da noite caiu uma carga de água. Também as nuvens 
pretas logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilhavam, 
brilhou também a lua cheia. Pela madrugada dos Capitães da Areia
vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles 
esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram 
que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como 
homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram 
as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais 
a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando 
com as luzes. As estrelas brilhavam ,brilhava a lua cheia. Mas, 
mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, 
amarelas, roxas, vermelhas, do Grande Carrossel Japonês."


Jorge Amado, em Capitães da Areia.

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