"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sutilezas Literárias # 048 - Khaled Hosseini

"Quando as meninas estavam com nove anos, a família se reuniu na casa de Saboor para um iftar no início da tarde, para encerrar o jejum do Ramadã. Os adultos ocupavam almofadas em volta do aposento, e a conversa era barulhenta. Chá, votos de felicidade e fofocas eram passados em igual proporção. Os homens dedilhavam contas de orações. E Parwana mantinha-se em silêncio, feliz por respirar o mesmo ar que Saboor, estar na vizinhança de seus olhos escuros como os de uma coruja.

Durante o evento, lançava olhares na direção dele. Surpreendeu-o mordendo um cubo de açúcar, coçando a curva suave da testa, rindo com gosto de algo que um tio mais velho dissera. Se ele percebesse que estava olhando, Parwana logo desviava o olhar, tensa e constrangida. Os joelhos começavam a tremer. A boca ficava tão seca que mal conseguia falar.


Parwana pensava, então, no caderno de anotações escondido debaixo de uma pilha de coisas dela em casa. Saboor estava sempre contando histórias, cheias de jinis e fadas, demônios e devs; era comum os garotos da aldeia se juntarem ao seu redor, para ouvir em absoluto silêncio as fábulas que inventava para eles. Mais ou menos seis meses antes, Parwana entreouvira Saboor contando a Nabi que gostaria de escrever suas histórias algum dia. Tempos depois, Parwana estava com a mãe num bazar em outra cidade, e ali, numa banca que vendia livros usados, viu um caderno lindo, com páginas lisas e pautadas, com uma capa de couro marrom-escuro com relevos nas bordas. Segurou o caderno na mão, sabendo que não tinha dinheiro para comprar aquilo. Então Parwana escolheu um momento em que o lojista não estava olhando e rapidamente enfiou o caderno embaixo do suéter.

Mas, nos seis meses que haviam se passado desde então, Parwana ainda não tinha criado
coragem para dar o caderno a Saboor. Morria de medo que ele caçoasse dela, ou que visse o que era e devolvesse o presente. Todas as noites, ao deitar, Parwana se agarrava ao caderno, escondido nas mãos embaixo da colcha, os dedos acariciando os relevos da capa de couro. Amanhã, prometia a si mesma. Amanhã eu vou dar o caderno a ele. Mais tarde naquele dia, depois do jantar em comemoração ao iftar, todos os meninos correram para brincar lá fora. Parwana, Masooma e Saboor se revezavam no balanço que o pai de Saboor havia pendurado num galho forte do carvalho gigante. Era a vez de Parwana se balançar, mas Saboor sempre se esquecia de empurrar o balanço, entretido em contar mais uma história. Dessa vez, era sobre o gigantesco carvalho, que ele dizia ter poderes mágicos. Se você tivesse um desejo, falou, só precisava se ajoelhar diante da árvore e dizê-lo em voz baixa. E se a árvore concordasse em realizar o desejo, soltaria exatamente dez folhas em sua cabeça.

Quando o balanço estava quase parando, Parwana virou-se para pedir a Saboor que continuasse empurrando, mas as palavras morreram em sua garganta. Saboor e Masooma estavam sorrindo um para o outro, e Parwana viu o caderno nas mãos de Saboor. O caderno dela. Eu encontrei lá em casa, disse Masooma depois. Era seu? Um dia eu pago de alguma forma, prometo. Você não achou ruim, achou? Simplesmente achei que era perfeito para ele. Para as histórias que conta. Você viu a expressão que ele fez? Você viu, Parwana?

Parwana disse que não, que não achava ruim, mas se sentiu dilacerada por dentro. Vezes sem conta visualizou a irmã e Saboor sorrindo um para o outro, o olhar que trocavam. Parwana poderia até ter desaparecido em pleno ar, como um gênio das histórias de Saboor, tão alheios os dois estavam de sua presença. Foi uma ferida profunda. Naquela noite, na cama, ela chorou bem baixinho."


Khaled Hosseini, em "O Silêncio das Montanhas". 
Tradução de: Claudio Carina - Páginas 58 e 59, Editora Globo

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