"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Eu, Cidadão, de Walcyr Carrasco

Eu, Cidadão
Walcyr Carrasco

"Como bom cidadão, decidi racionar meus gastos com energia elétrica. Chamei a empregada:

— Você está proibida de tomar banho aqui em casa.

— Mas o senhor quer que eu vá embora suja?

— Quando for para casa, você vai ter de pegar um

ônibus lotado. O primeiro banho terá sido inútil, pois terá de tomar outro ao chegar. Economize!
Ela me olhou raivosamente. Com certeza não economizou pensamentos!
Lembrei-me dos conselhos de um avô, segundo os quais banhos frios ajudam a manter a pele elástica. Abri o chuveiro.
Ai, que frio! Saí pelo banheiro saltitando como uma rã.
Conversei com meu personal trainer. A esteira gasta, muito energia.

— Você substitui eliminando o elevador.

Moro no 122 andar. Quando cheguei ao terceiro, minhas pernas latejavam. No quarto, eu me agarrava nas paredes como uma lagartixa. No sexto, bati na porta da vizinha, pedindo socorro. As panturrilhas duras recusavam-se a dar sequer um passo! De qualquer maneira, funcionou. Com as pernas em chamas, nem penso em voltar à esteira!

O microondas está criando teias de aranha.

Ultimamente só comia refeições dietéticas adquiridas em supermercados. Entretanto, já que é para usar o fogão a gás... vamos à luta! Chafurdei em salsichas com mostarda. Fiz um bolo de cenoura com calda de chocolate. Ganhei dois quilos, mas sem peso na consciência. Tudo pelo racionamento!

Luz, só para ler. Outro dia recebi visitas no escuro.

— Assim não consigo enxergar o seu rosto — reclamou uma amiga.

— Vamos nos contentar com uma conversa agradável, sem olhar um para o outro — retruquei.

Não ofereci café, pois minha cafeteira é elétrica. Sugeri:

— Aceita um refrigerante morno?

A visita demorou quinze minutos.

Aposentei um antigo e heróico freezer. Era meu orgulho.

Tem bem uns dezessete anos. Aparelhos velhos gastam mais.

— A gente podia criar abelhas dentro dele — propôs o caseiro da chácara. . .

Para tudo há um novo uso: Não seria o impulso para me transformar em um grande produtor de mel? Botamos o freezer encostado na cerca, certos de que abelhas pertencentes a algum movimento das sem colmeia se instalassem. Dois dias depois, ouvimos um barulhinho.

— Não disse que elas vinham? — comemorou o caseiro.

Fomos espiar cautelosamente. Dependurado nas grades havia um bando de... morcegos! Fugimos.

Na chácara há uma piscina. Proibi a limpeza.

— Como o senhor vai nadar?

-— Não vou, neste frio.

A água começa a esverdear. Tento agora descobrir como evitar a dengue. Só temos um problema: o cortador de grama.

— Se eu não cortar, isso aqui vira mato.

Resolvi comprar uma ovelha. Nada mais útil. Poderia pastar e ainda fornecer nutritivos litros de leite. E lã, caso eu encontrasse alguém capaz de fiar e tecer. Foi difícil. Tive de ir até perto de São Roque, onde consegui uma linda e econômica ovelhinha. Mal cheguei, o cachorro rosnou.

— E cão de caça, ele vai querer comer a ovelha.

Não deu outra. O caseiro passou dias de pavor tentando impedir os instintos selvagens do cão. A ovelhinha tremia, e nada de comer a grama! Para sobreviver, teve de dormir presa na cama do caseiro. Está sendo devolvida. Foi um prejuízo, que espero recuperar na conta de luz!

Parei de ouvir música. Para me distrair, canto em voz alta. Assim, além de evitar o meu consumo, evito o dos vizinhos. Ouvi falar em um abaixo-assinado, mas nada ainda chegou até mim.

Já ouvi um zunzunzum falando em camisa-de-força.

Nem sempre uma atitude cívica é bem compreendida. O bom cidadão é, antes de tudo, um mártir! "

Esta crônica foi publicado no livro "Pequenos Delitos"- 2004 - Editora Best Seller

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