"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Sutilezas Literárias # 050 - Viriato Corrêa

" NO POVOADO, a festa mais bonita do Natal era no sítio do João Raimundo, o lavrador que fazia anualmente a maior colheita de algodão. Festa de papouco. Brincava-se, cantava-se e dançava-se dois dias e duas noites. Nos lugarejos da roça, o Natal é a grande quadra dos "sambas". Em toda palhoça uma festa. Violas, sanfonas e cavaquinhos enchem de música todos os terreiros. O "samba" do João Raimundo começava ao amanhecer de 24 de dezembro. Mal o sol ia apontando no céu quando as ronqueiras estrondeavam nos ares.

Quando a manhã nascia, o terreiro estava todo plantado de arírís, enfeitado de arcos de píndoba e bandeirolas de papel. No centro, um grande mastro com a figura do menino Deus pregada na bandeira que tremulava no alto. Junto à casa — a latada coberta de murta e palmas verdes. Era debaixo da latada que se dançava.

A festa do João Raimundo tinha fama por aquelas redondezas. Convidavam-se os melhores tocadores de viola. Apareciam dois ou quatro cantadores para o "desafio". As mais queridas dançadeiras de chorado não deixavam de vir dançar. Havia comida para se botar fora. Os convidados iam chegando pela manhã. E, logo que entrava o primeiro tocador de sanfona ou de viola, começavam as danças.

Nós, as crianças, íamos para a sombra das jaqueiras brincar o dia inteiro. À noite é que a festa crescia e ficava bonita. Nada menos de seis, oito violas, três ou quatro cavaquinhos, rabecas, flautas e pandeiros. Na latada e na varanda, dançava um mundo de gente. No terreiro, lavado de luar, estrondeavam de quando em quando as ronqueiras. Devia ser meia-noite e eu já cochilava no regaço de minha mãe, quando o Manduca me veio prevenir que o "desafio" não tardaria a começar.

Corri à latada. Dançava-se vivamente. Para a gente matuta, não há nada mais importante numa festa do que o "desafio" entre dois famosos cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que todo mundo os ouça em silêncio.

Os cantadores que se iam medir aquela noite, eram o José Firmino e o Pedro Jeju, os mais festejados daquela beirada de rio. Ninguém queria perder uma palavra da luta que eles iam travar em versos. O João Raimundo bateu palmas no meio da latada impondo silêncio:

— Minha gente, vamos ouvir estes dois "turunas".

Zoou no ar um quente repinicado de primas e bordões de violas. Os dois cantadores sentaram-se frente a frente. Versos de cá, versos de lá, a cruzarem-se. Um improvisava uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha. No começo, cada um deles disse, em versos, quem era, como nascera, de onde tinha vindo. Cinco minutos depois, começaram a gabar-se de feitos maravilhosos.

O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente as cordas da viola, soltou a primeira gabolice:

— José Firmino acredite,
Não gosto de me gabar,
Mas quando pego a viola,
Quando começo a cantar,
Saem da cova os defuntos,
Os peixes saem do mar,
Os anjos descem do céu,
E tudo vem me escutar.

O José Firmino quase não deixou que o companheiro acabasse o último verso, ecantou de viola estendida no peito:

— Eu não tenho inveja disso,
Sou valente, valentão,
Canguçu é meu cavalo,
Cascavel meu cinturão,
Eu engulo brasa viva,
Pego corisco com a mão,
Um empurrão do meu dedo
Bota dez morros no chão.

O Pedro Jeju respondeu:

— Você pode ser valente,
Habilidoso não é.
Eu calço chinelo em cobra,
Boto guizo em jacaré,
Asso manteiga no espeto,
Faço o tempo andar à ré,
Carrego água em peneira,
Dou beijos em busca-pé.

O povo aplaudia com palmas e gritos.

José Firmino olhou o cantador de alto a baixo e improvisou:

— Isso tudo não é nada,
Não me pode amedrontar:
Paro o vento quando quero,
Já fiz o sol esfriar,
Bebo chumbo derretido,
Sem o chumbo me queimar,
Seguro as onças no mato,
Para meu filho mamar.

O outro acelerou os dedos nas cordas da viola e respondeu:

— Se eu for contar minhas artes 
Não acabo nunca mais;
Para apagar os incêndios
Uso breu e aguarrás,
Eu ponho luneta em pulga,
E gravata em Satanás,
Eu faço gelo com brasa,
Coisa que você não faz,
Faço o carro andar na frente,
Faço o boi andar atrás.

E ergueu-se. José Firmino ergueu-se também. Eram ambos fortes no desafio. Não haveria vencido nem vencedor. Não valia a pena teimar. " 

Viriato Corrêa, em "Cazuza" - Capítulo 'Cantadores de Viola' - Companhia Editora Nacional

obs.: Este foi o primeiro livro que li...

Um comentário:

  1. Rossi... Bom dia! Sem gabolices... Sem palavras... Viriato excede ... as palavras faladas não são suficientes para as escritas. Agradecido pelo seu blog, honras literárias ao texto...Cubra-se de glórias e seja feliz.

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