Quem escreve as bulas?
Mario Prata
Quando me perguntam a profissão e eu digo que sou escritor, logo vem outra em cima: de que? De tudo, minha senhora. De tudo, menos de bula. Romance, cinema, teatro, televisão, poesia, ensaios, tudo-tudo, menos bula!
Uma vez, num barzinho uma gatinha me perguntou o que eu escrevia e disse que escrevia bula. Ela não deu a menor atenção para mim. Se dissesse que era cronista do Estadão talvez tivesse mais sucesso. Por que o preconceito contras as geniais bulas? Quando é bula papal todo mundo leva a sério, mesmo que seja para dizer que não se pode fazer amor sem a intenção da procriação (que palavra mais animal!)
Não que eu não aprecie as bulas. Pelo contrário. Adoro lê-las. E com atenção. E, sempre, depois de ler uma, já começo a sentir todas as “reações adversas”.
Admiro, invejo esse colega que escreve bulas. Fico imaginando a cara dele, como deve ser a sua casa. Que papo tal escrivão deve levar com a mulher e com os vizinhos?
Tal remédio “é contra-indicado a pacientes sensíveis às benzodiazepinas e em pacientes portadores de miastenia gravis”. Dá vontade de telefonar para o autor e perguntar como é que eu vou saber se sou sensível e portador? Quanto ele ganha por bula? Será que ele leva os obrigatórios dez por cento de direitos autorais? Merecem, são gênios.
Jamais, numa peça de teatro, num roteiro de um filme ou mesmo numa simples crônica conseguiria a concisão seguinte: “é apresentado sob forma de uma solução isotônica (que lindo!) de cloreto de sódio, que não altera a fisiologia das células da mucosa nasal, em associação com cloreto de benzalcônio”. Sabe o que é? O velho e inocente Rinosoro.
Vejam o texto seguinte e sintam na narrativa como o autor é sádico: “você poderá ter sonolência, fadiga transitória, sensação de inquietação, aumento de apetite, confusão acompanhada de desorientação e alucinações, estado de ansiedade, agitação, distúrbios do sono, mania, hipomania, agressividade, déficit de memória, bocejos, despersonalização, insônia, pesadelos, agravamento da depressão e concentração deficiente. Vertigens, delírios, tremores, distúrbios da fala, convulsões e ataxia”. Pronto, tenho que ir ao dicionário ver o que é ataxia: “incapacidade de coordenação dos movimentos musculares voluntários e que pode fazer parte do quadro clínico de numerosas doenças do sistema nervoso”. Já sentindo tudo descrito acima.
Quem mandou ler?
E quem tem úlcera pélvica não pode tomar remédio nenhum. Está condenado à morte? Toda bula odeia essa tal de úlcera pélvica. As demais úlceras entram como coadjuvantes nos textos dos autores buláticos (tem a palavra no Aurélio).
E as gestantes (é como os buláticos chamam a grávida)? Elas não podem tomar nenhum remédio. Os nobres coleguinhas protegem a gravidez.
E se você tem “intolerância conhecida aos derivados pirazolônicos”, te cuida, irmão. Deve dar em gente nascida em Pirassanunga e região.
Para todo remédio uma bula diferente, um estilo próprio, um jeito de colocar a vírgula diferente.
Tudo isso para dizer que outro dia, na cama, com a parceira amada, pego uma camisinha na mesinha e abro. Sabe o quer estava escrito lá dentro? “Parabéns! Você adquiriu o mais avançado e seguro preservativo do mercado brasileiro”. Era uma bula. Escrita por algum conhecedor, é claro, dentro da caixinha da camisinha. Claro que me entusiasmei e segui a leitura deixando a amada de lado. Broxei, é claro. Mas, em compensação, fiquei sabendo que “o agente espermicida nonoxinol (essa não tem no Aurélio) 9 (logo o 9?) é contra as DSTs”.
Depois dessa informação, aí sim, voltei para a alcova. Mas e a amada, onde estava?
E lembre-se sempre: todo medicamento deve ser mantido fora do alcance das crianças. E não tome remédio sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde.
E pra cabeça!
Agora, falando sério. Admiro os escritores de bula. Assim como invejo os poetas. Talvez por nunca ter sido convidado (nem teria experiência) para escrever uma e nunca tenha conseguido escrever um poema. Sempre gostei de escrever as linhas até o final do parágrafo.
Para mim o poeta é um talentoso preguiçoso. Nunca chega ao final da linha. Já repararam?
Já o bulático, esse sim, é um esforçado poeta!
*
A crônica acima foi pulicada no jornal O Estado de São Paulo, em 30 de março de 1997
(º> Via: Mario Prata >>>
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