"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Bebi Champanhe na Taça Jules Rimet, por Roberto Abdalla Moura

Bebi Champanhe na Taça Jules Rimet 
Roberto Abdalla Moura


Estádio Azteca — palco de duas finais de Copa do Mundo, 1970 e 1986, a primeira entre Brasil e Itália, a segunda entre Argentina e Alemanha, perenes seleções disputando a primazia de serem campeãs do mundo.

Brasil x Itália — 1970.

Pelé abriu a contagem do jogo para o Brasil, com um bonito gol de cabeça. Quando Boninsegna empatou para a Itália, Zizinho, que estava ao meu lado na arquibancada, perguntou: “Será que dá?”.

Respondi-lhe, todo confiante: “Mestre Ziza, claro que dá. O Brasil tem o melhor ataque do mundo, melhor mesmo que o seu, de 1950. Ademais, tem vencido todos os jogos no segundo tempo, graças ao ótimo preparo físico, adaptação à altitude e exaustão das defesas adversárias”.

Ali estava eu, oftalmologista brasileiro, radicado naquela época nos Estados Unidos e, como todo bom brasileiro, também técnico de futebol nas horas vagas. No fim daquela tarde de 21 de junho de 1970, todos nós comemorávamos o tricampeonato brasileiro em Copas do Mundo, e aquelas imagens seriam as primeiras a serem transmitidas ao vivo, em cores, para todo o planeta, à exceção do Brasil, que não dispunha de tecnologia de decodificação de imagens e, portanto, as exibiria em preto e branco. As imagens guardadas na memória dos brasileiros seriam como as imagens dos sonhos.

Ganhamos em definitivo a posse da taça Jules Rimet, com a figura alada da deusa da Vitória, a mitológica Niké. Eu, único elemento estranho ao futebol, sentado no último banco do ônibus que nos levava de volta à concentração do Brasil, ainda emocionado (e muito) por tudo o que acontecera, sorvi o “líquido das estrelas”, oferecido a mim por nosso excelente capitão Carlos Alberto Torres.

E bebemos, nós todos, o champanhe da vitória, naquela bela taça de puro ouro, em seu pedestal de mármore. Não bastava ser aquela a coroação futebolística, o ápice de tudo para a Seleção, seus componentes e este médico mineiro, que fora apelidado de “péquente” e ouvira a “La golondrina”, música predileta de minha mãe, ser tocada quando da soltura dos balões e pombos, que sobrevoaram o estádio, no momento da entrega da taça pelo presidente do México.

No vestiário, após a cerimônia da entrega da taça, esta sairia escondida em um saco de roupa suja, enquanto uma suposta taça seria escoltada pelos carabineiros mexicanos. É que temíamos que ela fosse novamente roubada, como acontecera na Inglaterra em 1966 — embora tenha sido recuperada uma semana depois, o que fez famoso o cachorro Pickles, quando este, passeando com seu dono em um parque em Londres, farejou um arbusto e localizou ali um embrulho de jornal dentro do qual estava a Jules Rimet.

Ainda no vestiário, recebi, muito emocionado, agradecido e extremamente comovido, a medalha de ouro do jogador Tostão, meu paciente e amigo, e sua camisa do primeiro tempo do jogo final, a qual ele, mineiro precavido que é, preservara para esta oferta, já que seria despido de seu uniforme, ficando apenas de sunga, após o apito final do juiz e a invasão de campo pelos mexicanos, que simplesmente adoravam aquele time de futebol brasileiro. Em minha mente, passavam imagens daquela campanha irretocável e de alguns fatos inusitados que aconteceram durante a Copa de 1970.

Entre elas, destaco três episódios.

O primeiro, em León, quando encontrei o técnico Zagallo após um treino da Seleção, na véspera da inscrição final dos jogadores, e ele me perguntou se Tostão estaria apto a disputar a Copa. Disse-lhe que, medicamente, sim, e perguntei-lhe da importância de Tostão no ataque do Brasil. E ele me respondeu: “Enquanto eu tiver um jogador como Tostão, nunca perderei um jogo para uma seleção que jogue com um líbero. Ele cai para cima dele e o desloca para o lado, para fora da área, abrindo espaço para a penetração e finalização de outros”. Profecia? Não. Entendido do assunto, e muito.
Na volta para a Cidade do México, num carro alugado em León, paramos à beira da estrada para “desaguar” uma cerveja brasileira que havíamos bebido no almoço, com os jogadores e a comissão técnica. O motorista, Pepe, me apontava os arbustos que serviam para a confecção de tequila, e eu lhe dizia que, meses e anos mais tarde, não entenderiam por que aquela particular tequila tinha um gostinho de cerveja brasileira.

O segundo episódio se refere a um fato extraordinário, que aconteceu na véspera do jogo mais difícil, contra a Inglaterra. Cenário: Guadalajara. Horário da partida: meio-dia. Fazia um calor escaldante. O estádio era bom e estava pronto, mas tinha alguns pequenos defeitos. Um deles, o de não haver energia elétrica em um dos vestiários. Gérson, contundido, não jogaria e seria substituído (e bem) por Paulo César Caju. Os defensores ingleses eram considerados os melhores da Copa, a começar pelo brilhante goleiro Banks. A defesa era enigmática como a Esfinge: “Decifra me ou te devoro”.

Na véspera do jogo, à noitinha, os jogadores já recolhidos para o descanso, alguém disse: “Amanhã temos que chegar bem cedo ao estádio, porque existe energia elétrica somente em um dos vestiários, no outro não. Nem poderemos ligar os ventiladores, e o jogo será ao meio-dia. Vamos ocupar o vestiário bem cedo. Tá bem?”.
“Tá!”
Mas um outro perguntou: “E se os ingleses chegarem primeiro?”. Nos entreolhamos, e alguém disse: “Vamos agora”. Assim, quatro mosqueteiros foram de madrugada ao estádio, acordando os seguranças, que, após as explicações necessárias, nos deixaram entrar e ocupar o vestiário ideal, com a bandeira do Brasil e tudo mais. O resultado foi que, com o calor infernal que fazia na hora do jogo, em pleno verão mexicano, o time inglês não pôde descer para os vestiários no intervalo do primeiro para o segundo tempo.

Brasil 1 x 0 Inglaterra.
Dizem que Copa do Mundo se ganha com pequenos pormenores, e nós, orgulhosos, nos sentíamos um pouco vitoriosos também, como nossos jogadores. E que jogada pela esquerda, a do Tostão. Fiquei orgulhoso também por isso. 

O terceiro episódio, que sobressaiu em minha memória, foi o de duas preleções: a da comissão técnica e uma minha, pessoal. A comissão técnica era constituída por Zagallo, Parreira, Cláudio Coutinho e Lídio Toledo. Graças a centenas de fotos de Parreira, nosso observador no jogo da semifinal entre Alemanha e Itália, pôde-se observar exatamente como a Itália se defendia e como atacava. Isso abriu caminho para o gol de Carlos Alberto, pela direita, já que Facchetti acompanhava Jairzinho, em implacável marcação homem a homem. Jairzinho, se deslocando como fora pedido, para o meio campo, no meio da defesa, abriu um corredor pela direita do Brasil, a esquerda da Itália, por onde penetrou e apontou nosso capitão. Um golaço! E Tostão, de costas para o gol, apontando para Pelé, “passe, passe”... O resto é história de

Copa do Mundo. Brasil 4 x 1 Itália.

Minha preleção foi dada a pedido dos jogadores e da direção da delegação. Também ocorreu na antevéspera do jogo final. E explico a razão. Havia, entre os jogadores que quisessem assistir, uma corrente espiritual para dar força positiva na véspera ou na antevéspera dos jogos. Durante a Copa, houve vários oradores para esse encontro espiritual. Inclusive Pelé, se não me engano, foi um deles. Para a final, me pediram para fazê-lo, nesse encontro com os jogadores. Que responsabilidade enorme sobre meus ombros.
Mas fiz o melhor que pude, citando inclusive o padre Antônio Vieira. O resto também é história. Disse-lhes, parafraseando Vieira, que o contrário da luz não é a escuridão, mas sim uma luz mais forte, pois, na escuridão, qualquer luz brilha, por menos intensa que seja. Ao lado de uma luz forte, as luzes menores não são detectadas, como que se apagam. E nossa luz, a da Seleção, seria mais brilhante. E ainda pedimos a Deus pela integridade física de todos os jogadores das duas seleções. Recebi do capitão Carlos Alberto a primeira foto em preto e branco da Seleção tricampeã do mundo, devidamente autografada por todos os jogadores, momentos antes de partirmos para o jantar de confraternização, oferecido pelo presidente mexicano. Agora, contemplo-a de tempos em tempos, relembro que Tostão, Eduardo Gonçalves Andrade, ex-jogador, médico e jornalista emérito, mas principalmente o amigo de ontem, hoje e sempre, participou, e muito bem, do terceiro campeonato mundial de futebol vencido pelo Brasil. Vez por outra, nos encontramos para, como bons mineiros, jogar conversa fora.

(º> Fonte: Tempos Vividos, Sonhados e Perdidos
 - Tostão - Companhia das Letras

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