"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

sábado, 31 de outubro de 2020

Assim naTerra como Embaixo da Terra, de Ana Paula Maia


Assim na Terra 
como Embaixo 
da Terra


Ana Paula Maia


144 Páginas – 2017

Editora Record



Assim na Terra como Embaixo da Terra, em uma linguagem direta e intensa, Ana Paula Maia nos traz a história de uma colônia penal isolada, onde o agente superior Melquíades é o algoz dos condenados, onde ele os caça e os mata por simples satisfação pessoal. A colônia que era pra ser modelo de detenção da qual nenhum preso conseguiria fugir, está prestes a ser desativada, mas antes disso, este lugar que fora construído em um terreno que guarda tenebrosas histórias de assassinatos e torturas de escravos, se tornará um campo de extermínio por obra de seu agente Melquíades e comparsas, como Taborda, que cumpre ordens de Melquíades sem resignação e sem sentimentos humanos. Os presos que são poucos agora, entre eles, Pablo, Índio e Bronco Gil, estão sempre planejando a fuga deste inferno, mesmo sabendo que poderão ser caçados e mortos como animais selvagens. 

Só pelo título, o livro já desperta curiosidades. O texto flui dinamicamente prendendo a atenção desde o início com uma narrativa reflexiva e pujante, em um cenário cruel e violento. Faz referência sobre um importante assunto, a questão atual dos presídios brasileiros, com lotações acima do permitido e de maioria negra. 

“... Esta obra de Ana Paula Maia será lembrada como um instante de alta voltagem literária que desloca seu leitor de algum lugar confortável.” – Marcia Tiburi [Orelha do Livro]

Assim na terra como embaixo da terra é o sexto romance de Ana Paula Maia – vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018. 

Excelente livro!

Trechos:
- "Taborda separa o couro do osso e deixa pele pendurada num galho de árvore, limpa a cabeça do javali, removendo todo o conteúdo. Ele é hábil nessa atividade, e o cheiro fétido ao seu redor faz com que apenas as moscas se aproximem dos resíduos ensanguentados. Com uma faquinha, ele raspa o excesso de carne colada ao osso. Seca o suor da testa com as costas da mão. Dá-se por satisfeito ao ver um monte de carne desfiada ao lado de sua perna. Levanta-se apanha o esqueleto e uma pá e segue até o formigueiro, localizado nos fundos do pavilhão central. Com agilidade, ele cava a terra de onde centenas de formigas saem e ali coloca o crânio do javali. Joga a terra por cima e afasta-se apressadamente, debatendo-se e pisando com força no chão. Dali a dois meses, as formigas terão feito a limpeza geral no crânio, devorando dia e noite as carnes que não foram removidas manualmente. Apanha o couro que havia pendurado no galho de uma árvore e o leva para ser curtido no sal grosso dentro de um quartinho abandonado que servia outrora de depósito de feno." - páginas 23 e 24

- "Logo depois de amanhecer, o dia refletia uma brancura intransponível que fazia os limites entre céu e terra desaparecerem. As montanhas que contornam a região amanheceram cobertas pela geada. Horas depois, o sol apareceu, vigoroso. Os homens que ainda restam na Colônia dividem-se no trabalho do roçado e da cozinha desde muito cedo. O galinheiro e a pocilga já foram devidamente cuidados. Pablo puxa uma carroça cheia de sacos de lixo. Sente-se um jumento, uma besta de carga. Desde que os cavalos foram mortos, são eles que puxam as carroças. Atravessa uma parte da fazenda cujo solo é mais arenoso, provocando, assim, o afundamento das rodas. Isso dificulta seu labor de besta e, vez ou outra, precisa parar para se recompor. O lixão atrai abutres para o local, e o fato de incinerarem a imundície não os espanta. Pelo contrário, como um sinaleiro, a fumaça parece atraí-los ainda de mais longe. Observa o voejar das aves negras, cortando o céu com suas asas arqueadas, grasnando uma para a outra, numa comunicação que ecoa a quilômetros de distância. Não é raro uma ave ou outra prender-se na cerca eletrificada e morrer depois de se debater inutilmente. Em algumas partes da cerca é possível ver restos dos esqueletos das aves que foram capturadas. Às vezes, Taborda utiliza uma longa vara de madeira para removê-los." - páginas 65 e 66

- “Nos primeiros anos, comboios com presos chegavam semanalmente, eram divididos em funções e disciplinados com rigor quando cometiam uma infração. Diversas fugas foram planejadas, mas nenhuma realmente fora posta em prática. Os presos que ameaçavam a boa convivência no local eram mortos longe dos outros e enterrados em covas coletivas. Alguns anos depois de inaugurada, a Colônia tornou-se um lugar de extermínio. As ordens vinham por escrito, enviadas por telegramas ou telefonemas lacônicos. Os comboios com apenados para serem mortos chegavam com regularidade. Homens de todas as partes, culpados de crimes hediondos, julgados e condenados. Melquíades abatia os homens como quem abate o gado. Eram ordens que deveriam ser cumpridas e não questionadas.” – página 70

-“'Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem.' Esse versículo da Bíblia permanecia pregado na porta do seu armário no quartel. Todos sabiam que era um homem de fé e de sangue. Acreditava que se Deus fez o homem conforme a sua imagem, então a justiça de Deus deveria ser feita por intermédio do homem, já que todo ser humano é a manifestação de Deus na Terra. Quando um homem mata um homem, ele mata a imagem de Deus; e, assim, a imagem de Deus torna-se assassina e assassinada ao mesmo tempo.
Era comum cair em longos silêncios depois de matar. Por um lado, justiça havia sido feita; por outro, um pouco de Deus estava morto.” – página 81

-“ O confinamento de homens assemelha-se a um curral de animais. O gado é abatido para se transformar em alimento; os homens, por sua vez, são abatidos para deixarem de existir. Não é um lugar de recuperação ou coisa que o valha, é um curral para se amontoarem os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas de lixo, que ninguém quer lembrar que existem, ver ou sentir seus odores.” – página 97

“No fim, somos todos livres, porque, no fim, estaremos mortos.”
- Bronco Gil [Personagem do livro]

A Autora:
Escritora e roteirista, Ana Paula Maia é autora de romances de tom naturalista. Venceu duas vezes o Prêmio São Paulo de Literatura, com os livros "Assim na terra como embaixo da terra" (2018) e "Enterre seus mortos" (2019).
Suas obras tematizam a relação do homem com o trabalho, a moldagem do caráter pelas atividades diárias e a inferiorização do homem pelo trabalho que exerce. Seus personagens são, em suas palavras, "homens-bestas" - trabalham duro, sobrevivem com muito pouco, esperam o mínimo da vida e, em silêncio, carregam seus fardos e o dos outros. Destaca-se a trilogia "A Saga dos Brutos", composta pelas novelas "Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos" (2009), "O trabalho sujo dos outros" (2009) e "Carvão animal" (2011).

Fica a Dica!

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