"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Sutilezas Literárias # 013 - Aluísio Azevedo

"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os
olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete
horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de
neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite
antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem
um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o
ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do
chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos
azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita
de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono;
ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas;
pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a
tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os
outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras,
os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a
pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham
choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor
que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam,
sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar
de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar
cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à
semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente,
espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros,
lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria
da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres
precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar;
via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas
despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os
homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao
contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com
força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas
da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e
fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se
demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as
saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir,
despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da
estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias
acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só
ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer
compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se
gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se
naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas
rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente
da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de
respirar sobre a terra. Da porta da venda que dava para o 
cortiço iam e vinham como formigas; fazendo compras". (...)

Aluísio Azevedo, em O Cortiço, Capítulo III.

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