"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 21 de março de 2013

Sutilezas Literárias # 028 - Machado de Assis

(...)
"Um dia de manhã,—eram passadas três semanas,—estando Crispim
Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o
alienista o mandava chamar.
—Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, 
acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma
notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve
ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim
amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um
só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os
fâmulos lhe ouviam muita vez:—"Anda, bem feito, quem te mandou
consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para
adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora agüenta-te; anda, agüenta-te,
alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amem a tudo, não é? aí
tens o lucro, biltre!"—E muitos outros nomes feios, que um homem não
deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o
efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu
mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma
alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.
—Estou muito contente, disse ele.
—Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
—Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica.
Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha
idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação
constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que
vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até
agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a 
suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois
explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia
uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia
de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na
história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o
perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história.
Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres,
Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à
esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de
casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e
entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal
promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até
acrescentou sentenciosamente:
—A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
—Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as
mãos ao céu.
Quanto à idéia de ampliar 0 território da loucura, achou-a 0 boticário
extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe
sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a
sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta
expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo,
Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não
dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por
meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da
matriz;—ou por meio de matraca.
Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por
um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na
mão." (...)

Machado de Assis, em O Alienista, (Capítulo IV - Uma Teoria Nova).

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