"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sutilezas Literárias # 026 - Eça de Queirós

"Sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia".

(...) "E os anos assim foram passando; pelas vésperas de Natal
acendia-se um braseiro no refeitório; eu envergava o meu casacão
forrado de baeta e ornado de uma gola de astracã; depois chegavam
as andorinhas aos beirais do nosso telhado; e no oratório da Titi, em
lugar de camélias, vinham braçadas dos primeiros cravos vermelhos
perfumar os pés de ouro de Jesus; depois era o tempo dos banhos de
mar, e o Padre Casimiro mandava à Titi um gigo de uvas da sua
quinta de Torres... Eu comecei a estudar retórica.
Um dia, o nosso bom procurador disse-me que eu não voltaria
mais para os Isidoros, indo acabar os meus preparatórios em
Coimbra, na casa do Doutor Roxo, lente de teologia. Fizeram-me
roupa branca. A Titi deu-me num papel a oração que eu diariamente
devia rezar a São Luís Gonzaga, padroeiro da mocidade estudiosa,
para que ele conservasse em meu corpo a frescura da castidade, e na
minha alma o medo do Senhor. O Padre Casimiro foi-me levar à
cidade graciosa, onde dormita Minerva.
Detestei logo o Doutor Roxo. Em sua casa sofri vida dura e
claustral; e foi um inefável gosto quando, no meu primeiro ano de
Direito, o desagradável eclesiástico morreu miseravelmente de um
antraz. Passei então para a divertida hospedagem das Pimentas, e
conheci logo, sem moderação, todas as independências, e as fortes
delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a São Luís
Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que
usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas;
afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um
marcador do Trony; fartei a carne com saborosos amores no
Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como
a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de
Raposão. Todos os quinze dias, porém escrevia à Titi, na minha boa
letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a severidade
dos meus estudos, o recato dos meus hábitos, as copiosas rezas e os
rígidos jejuns, os sermões de que me nutria, os doces desagravos ao
Coração de Jesus à tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a
minha alma em Santa-Cruz no remanso dos dias feriados...
Os meses de verão em Lisboa eram depois dolorosos. Não
podia sair, mesmo a espontar o cabelo, sem implorar da Titi uma
licença servil. Não ousava fumar ao café. Devia recolher
virginalmente, à noitinha; e, antes de me deitar, tinha de rezar com a
velha um longo terço no oratório. Eu próprio me condenara a esta
detestável devoção!
- Tu lá nos teus estudos costumas fazer o teu terço? 
- perguntara-me, com secura, a Titi.
E eu, sorrindo abjetamente:
- Ora essa. É que nem posso adormecer sem ter rezado o meu
rico terço. (...)

Eça de Queirós, em A Relíquia, (1887) - Capítulo 1.

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