"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Um Apólogo, de Machado de Assis

Um Apólogo
Machado de Assis


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada,
para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
- Deixe-me, senhora.
- Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar 
insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. 
- Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não 
tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que 
Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. 
- Mas você é orgulhosa. 
- Decerto que sou. 
- Mas por quê? 
- É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, 
quem é que os cose, senão eu? 
- Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? 
Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? 
- Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço 
ao outro, dou feição aos babados... 
- Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, 
puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando... 
- Também os batedores vão adiante do imperador. 
- Você é imperador? 
- Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, 
indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho 
obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto... 
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se 
disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista 
ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou 
do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e 
entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano 
adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, 
ágeis como os galgos de Diana - para dar a isto uma cor poética. 
E dizia a agulha: 
- Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara 
que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui 
entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima. 
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha 
era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e 
não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava 
resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta 
de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. 
Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; 
continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, 
e ficou esperando o baile. 
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou 
a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum 
ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e 
puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, 
abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: 
- Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, 
fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com 
ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, 
antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. 
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de 
cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que 
vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como 
eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, 
abanando a cabeça: 
- Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! 

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos",
Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.

> Via: Releituras.

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