"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Antena Ligada, de Lourenço Diaféria

Antena Ligada
Lourenço Diaféria

"Troquei meu televisor em branco-e-preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de meus filhos, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel, fazer um trabalho sobre o Sócrates. Fiquei uma arara. Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto. Tirou zero.

Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de são-paulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco. O Sócrates que ele queria é um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?

Me manquei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova oportunidade.
Falou, eu disse.

Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.

Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.

Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time da terra das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nenhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antônio Contente, que transa em assuntos culturais e conexos (como seja a imprensa), e pedi por favor que me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.

Não é pra falar, mas o trabalho escolar ficou um luxo. Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação com laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito.

Pois deu zebra. Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. O homem deve ser primo do Dicá. Sabem o que o mestre fez? Heim? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.

– Ilustre – eu disse – com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?

Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras – acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá, dizem que professor padece um bocado – coçou a cabeça, murmurou:

– Foi o senhor quem fez a lição?

Fiquei meio sem jeito:

– Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...

Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:

– Se aceita um conselho, pare de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.

Falar isso na minha cara! Tive de aguentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse a dupla de área chamada Peri e Ceci. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?

– Tá bem – eu disse – não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra colher de chá ao menino?

Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani.

É qualquer coisa com índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela em cores. Mas só para complicar a vida do meu filho, o professor não revelou o horário.

Porém desta vez ele não me ferra.

Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigada a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa."

Este texto foi publicado no Livro - "Pra Gostar de Ler - Volume 7 -
 Crônicas" Editora Ática

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