"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

domingo, 3 de junho de 2012

Sutilezas Literárias # 011 - Clarice Lispector

(...)
"Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus.
 Estava habituada a se esquecer de si mesma.
 Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.
- Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu
 um livro chamado "Alice no País das Maravilhas" e que era
 também um matemático?
Falaram também em
"élgebra". O que é que quer dizer "élgebra"?
- Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher.
Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é
palavrão para moça direita.
- Nessa rádio eles dizem essa coisa de "
cultura" e palavras difíceis,
 por exemplo: o que quer dizer "eletrônico"?
Silêncio.
- Eu sei mas não quero dizer.
- Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim:
tic-tac-tic-tac-tic.
A Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios.
Que quer dizer cultura?
- Cultura é cultura - continuou ele emburrado. - Você também vive
me encostando na parede.
- é que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer
"renda per capita"?
- Ora, é fácil, é coisa de médico.
- O que quer dizer, Rua Conde de Bonfim?
O que é conde? É príncipe?
- Conde é Conde, ora essa.
Eu não preciso de hora certa porque tenho relógio.
 Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha

 deixado na pia quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um
verdadeiro técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.
- Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se
devia ter alegria de viver. Então eu tenho.
Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei.
- Era samba?
- Acho que era. E cantada por um homem chamado
Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia

que até doía ouvir. A música chamava-se "Una Furtiva Lacrima".
Não sei por que eles não disseram lágrima.
"
Una Furtiva Lacrima" fora a única coisa belíssima
na sua vida. Enxugando as próprias lágrimas tentou
cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão
desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara
chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta

 água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que
chorava. Não chorava por causa da vida que levava:
porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que
com ela era "assim". Mas também creio que chorava porque, através

da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir,
havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma.
Muitas coisas sabia que não sabia entender. "
Aristocracia" significaria

por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que
assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que
não carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto
de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se no

desconhecido de si mesma disse:
- Eu acho que até sei cantar essa música.
Lá-lá-lálá-lá.
- Você até parece uma muda cantando.
Voz de cana rachada.
- Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida.

Ela achava que "lacrima" em vez de lágrima era erro
do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a
existência de outra língua e pensava que no Brasil se
falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos
domingos, só tinha essa música. O substrato último da
música era a sua única vibração." (...)

Clarice Lispector, em A Hora da Estrela.
 (págs.: 49 a 51) - Editora Rocco

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