"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Sutilezas Literárias # 039 - Thomas Mann

(...) Era início de maio e, após semanas úmidas e frias, irrompera bruscamente um falso auge de verão. O Jardim Inglês, apesar de mal ter começado a cobrir-se de folhas tenras, estivera abafado como em agosto e cheio de veículos e transeuntes nos arredores da cidade. Buscando caminhos mais ermos e tranqüilos, Aschenbach chegara até Aumeister, onde se detivera por alguns momentos a observar o terraço do restaurante, animado como de praxe, ao redor do qual estavam estacionados alguns coches e carruagens; de lá, com o sol poente, tomara o caminho de volta pelo campo aberto, fora dos limites do parque; como, porém, estivesse cansado, e dos lados de Föhring ameaçasse vir um temporal, deteve-se junto ao Cemitério Norte, aguardando o bonde que deveria levá-lo de volta à cidade, em linha reta. 

Casualmente encontrou desertos o ponto de parada e seus arredores. Não se via um só veículo, nem na pavimentada rua Ungerer, cujos trilhos se estendiam, brilhando solitários, na direção de Schwabing, nem na estrada de Föhring. Por trás das sebes das marmorarias, onde cruzes, lápides e mausoléus à venda configuravam um segundo cemitério, desabitado, nada se mexia, e a capela mortuária, de construção bizantina, ali defronte, repousava silenciosa, banhada pelo reflexo do dia que findava. Sua fachada, guarnecida de cruzes gregas e emblemas hieráticos em cores claras, apresentava ainda inscrições em letras douradas, dispostas simetricamente --citações escolhidas das escrituras, relativas à vida no Além, como "Eles adentrarão a morada de Deus" ou "Que a luz eterna os ilumine" -, e, enquanto esperava, Aschenbach encontrou por alguns minutos um sério entretenimento em decifrar tais fórmulas, deixando o espírito vagar contemplativo por sua mística transparente até que, ao retornar de seus devaneios, notou no pórtico, acima dos dois animais apocalípticos que vigiavam a escadaria, um homem cuja aparência não muito habitual imprimiu a seus pensamentos um rumo inteiramente diverso. 

Se surgira do interior da capela, passando pela porta de bronze, ou se, vindo de fora, subira até lá, sem ser notado, não se poderia precisar. Sem se aprofundar muito na questão, Aschenbach pendeu mais para a primeira hipótese. De estatura mediana, magro, sem barba e com um nariz incrivelmente rombudo, o homem era do tipo ruivo, com a característica pele leitosa e sardenta. 

Ao que tudo indicava, não era bávaro, a começar pelo chapéu de palha de abas largas e retas que lhe cobria a cabeça, emprestando à sua aparência um ar de estrangeiro, de alguém vindo de terra distante. Usava, entretanto, uma mochila afivelada aos ombros, de acordo com o costume local, um terno acinturado de cor amarela e, ao que parece, de tecido cru; no braço esquerdo, que mantinha junto ao corpo, trazia uma capa de chuva cinza, e na mão direita, um bastão com ponta de ferro, firmado obliquamente contra o solo e em cujo castão apoiava o quadril, tendo os pés cruzados. De cabeça erguida, de modo que o pomo-de-adão se destacava forte e nu no pescoço magro, a despontar da camisa esporte frouxa, ele perscrutava atentamente o horizonte com os olhos descoloridos, franjados de cílios vermelhos e separados por duas rugas verticais enérgicas, numa combinação curiosa com o nariz levemente arrebitado. Assim, e talvez contribuísse para essa impressão o lugar elevado e elevante em que se encontrava, sua postura tinha um quê de dominadora altivez, arrogância ou mesmo ferocidade, pois, talvez ofuscado, franzia o rosto para o sol poente, ou, talvez por uma deformidade fisionômica perene, seus lábios pareciam curtos demais, arreganhados, expondo até as gengivas os dentes longos e brancos. 

É bem possível que Aschenbach, em sua inspeção meio distraída e meio inquisitiva do estranho, tivesse incorrido numa falta de consideração, pois de súbito percebeu que este revidava seu olhar, e de modo tão belicoso, tão direto, tão visivelmente disposto a levar o caso ao extremo, forçando o outro a desviar os olhos, que Aschenbach, incomodado, voltou-se e pôs-se a caminhar ao longo das sebes, decidido a não se ocupar mais do homem. Minutos depois já o havia esquecido. Entretanto, ou porque o aspecto de viajante do estranho atuasse sobre sua imaginação, ou por estar em jogo algum tipo de influência física ou psíquica, notou, atônito, uma estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de inquietação errante, um anseio juvenil sedento de distância, um sentimento tão vivo, tão novo, ou, antes, há tanto tempo inabitual e desaprendido, que ele parou enleado, mãos nas costas e olhos no chão, a investigar a natureza e o propósito dessa sensação. 

Era vontade de viajar, nada mais; mas, na verdade, irrompera como um acesso e se intensificara, atingindo o nível passional, sim, até beirar a alucinação. Sua ânsia se fez evidente, sua imaginação, que desde as horas de trabalho ainda não encontrara repouso, criou um exemplo de todas as maravilhas e horrores da terra variegada que repentinamente se via solicitada a configurar: ele via, via uma paisagem sob um céu carregado de vapores, uma região pantanosa, úmida, exuberante e monstruosa, uma espécie de selva antediluviana, feita de ilhas, brejos e braços de rio lamacentos --via por toda parte cabeleiras de palmeiras a emergir de uma profusão de fetos luxuriosos, de um fundo vegetal de plantas carnudas, inchadas, explodindo em florações exóticas; via árvores incrivelmente distorcidas lançarem no ar raízes que vinham mergulhar no solo, em águas estagnadas, a espelhar um verde sombrio, onde, entre flores flutuantes de um branco leitoso e do tamanho de terrinas, pássaros bizarros de ombros altos e bico disforme ficavam de pé nos baixios, olhando de lado, imóveis; via faiscar, entre as hastes nodosas de um bambual, as pupilas de um tigre agachado --e sentia o coração pulsar num misto de terror e enigmática atração. A seguir, a visão desvaneceu-se e, meneando a cabeça, Aschenbach retomou sua caminhada ao longo das sebes das marmorarias. 

Para ele, viajar --pelo menos desde que pudera dispor de meios para usufruir a seu bel-prazer as vantagens do tráfego internacional --não significava nada além de uma medida higiênica, que era preciso adotar de tempos em tempos a contragosto. Excessivamente ocupado com as tarefas que seu eu e a alma européia lhe propunham, excessivamente sobrecarregado pelo dever de produção, excessivamente avesso à distração para prestar-se ao papel de amante do colorido mundo exterior, dera-se inteiramente por satisfeito com o parecer de que cada um pode tirar proveito da superfície do mundo sem se afastar muito de seu círculo, e jamais se sentira sequer tentado a deixar a Europa. Sobretudo, desde que sua vida começara lentamente a declinar, desde que seu medo de artista de não atingir o fim --esse receio de o relógio querer parar antes de ele ter cumprido sua parte, antes de ter-se dado por inteiro --não devia mais ser considerado mera extravagância, sua existência exterior vinha sendo limitada quase que exclusivamente à bela cidade que elegera como sua e à casa rústica que construíra nas montanhas e onde passava os verões chuvosos. (...)

Thomas Mann em, "Morte em Veneza"
Capítulo I, Biblioteca Folha - Tradução de: Heloísa F. A. Silva

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