"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Futebol, Metáfora da Vida, por Tostão

Futebol, metáfora da vida
Eduardo Gonçalves Andrade (Tostão)

O futebol pode ser visto, analisado, admirado e imaginado de diferentes maneiras. Essa multiplicidade de olhares, a beleza do jogo e a presença marcante e frequente do imponderável fazem do futebol o esporte mais popular, mais emocionante e mais surpreendente do mundo.

Pode ser visto como um jogo de habilidade, de criatividade e de fantasia; um jogo técnico, científico, pragmático e planejado; uma disputa corporal e de força física; um balé; uma metáfora da vida, com seus dramas, dualidades e emoções; um grande negócio (cada vez mais); um entretenimento; uma catarse para os torcedores; uma manifestação cultural, política e sociológica; de todas essas formas e de outras que se possa imaginar.

O futebol chegou ao Brasil em 1894, trazido por Charles Miller, filho de um inglês com uma brasileira. No início, era jogado somente pelos ricos e brancos. Não daria certo. Na década de 1920, o Vasco foi o primeiro clube brasileiro a contratar negros. Tudo mudou. A miscigenação do povo brasileiro foi um fator decisivo para o crescimento técnico do futebol e para o surgimento do estilo habilidoso e criativo. Nascia o futebol-arte, tão admirado em todo o mundo.

A profissionalização do futebol começou em 1933. Apesar de ser hoje um grande negócio, o futebol brasileiro ainda tem muito de amadorismo e de improvisação. Muitos torcedores não aceitam também as mudanças. Sonham com um time de jogadores apaixonados e com uma longa carreira em seus clubes.

Desde menino, ouço que o Brasil é o país do futuro, e que o futebol brasileiro é desorganizado fora de campo. O futuro ainda não chegou, e os clubes continuam desorganizados, administrados por pessoas incompetentes e oportunistas.

Dentro de campo, o futebol brasileiro é o grande destaque mundial, e o Brasil o país que mais forma jogadores. Para ser um atleta excepcional, um craque, é preciso ter, em alto nível e em proporções variáveis para cada jogador, muita habilidade, criatividade, técnica, além de ótimas condições físicas e emocionais. O talento é a união de tudo isso.

A habilidade é a intimidade com a bola, a capacidade decolá-la nos pés, não perdê-la, mesmo diante de um adversário. Assim como a criatividade, a habilidade surge na infância, nas brincadeiras, sem regras e sem professores.

Dos fundamentos técnicos (passe, drible, finalização, desarme), o drible é o mais representativo da habilidade. A finta é o drible de corpo, sem tocar na bola. O drible, característica do futebol brasileiro, tem muito a ver com a ginga, com a dança e com nossa origem multirracial. Ele é o fundamento técnico mais lúdico e o mais importante para ultrapassar uma forte defesa. O drible tem sido cada dia mais substituído pelo passe, tecnicamente correto, sem risco. Os dois fundamentos são essenciais. O passe é o fundamento técnico mais representativo do jogo coletivo e planejado.

A criatividade é a antevisão do lance e a jogada surpreendente. Antes de a bola chegar, o craque, em uma fração de segundos, mapeia tudo o que está à sua volta, percebe a movimentação dos jogadores e calcula a velocidade da bola, dos companheiros e dos adversários.

Como ele sabe tudo isso? Sabendo. Sabe, mas não sabe que sabe. Existe um saber que antecede o raciocínio lógico. Alguns chamam isso de intuição, outros, de inteligência emocional, de inteligência inconsciente. Os especialistas médicos falam de inteligência cinestésica.

As escolinhas de futebol, particulares ou de clubes profissionais, estão invertendo o aprendizado e o desenvolvimento das crianças. Em vez de brincar com a bola, durante a primeira infância, os meninos, muito cedo, estão aprendendo a técnica, as regras e os conhecimentos táticos. Tudo isso deve ser aprendido na adolescência, nas categorias de base dos clubes, depois que os meninos desenvolverem a habilidade e a fantasia na infância.

O Brasil se tornou um grande exportador de jogadores, para todos os lugares do mundo. Há mercado para os craques, para os bons e para os medíocres.

O sonho dos treinadores, de todo o mundo, de parte da imprensa e de todos os pragmáticos e apaixonados pelo cientificismo, é transformar o futebol em um esporte cada vez mais técnico, programado, racional, de jogadas ensaiadas e repetidas, como o vôlei e outros esportes. Ficaria mais fácil de ser analisado.

A Seleção brasileira de 1970, campeã do mundo, considerada a melhor ou uma das melhores da história, pelo jogo eficiente e bonito, foi, paradoxalmente, também o marco, o início, no Brasil, do futebol mais tático e organizado, dentro e fora de campo. Por causa do excelente planejamento feito pelo Brasil, na Copa de 1970, todos os grandes times brasileiros passaram a valorizar mais a parte física e tática, muitas vezes em detrimento da habilidade, da fantasia e da improvisação.

Hoje, com a globalização e a valorização do futebol técnico e programado, há, cada vez menos, diferença entre o estilo brasileiro e sul-americano e o estilo europeu. Os brasileiros copiaram o pragmatismo europeu, e estes aprenderam com a fantasia e a criatividade do brasileiro. Levaram vantagem.

A diferença ainda existe porque, de vez em quando, surge, no Brasil, jogadores como Ronaldinho, Robinho e outros, que são mais raros na Europa. Já Kaká, um dos melhores jogadores do mundo, tem um estilo mais parecido com o dos europeus do que dos brasileiros. Kaká se destaca muito mais pela técnica, pela velocidade, pela força física e pela disciplina. Já Robinho e Ronaldinho se destacam mais pela fantasia e improvisação. Isso não significa que Kaká não seja habilidoso nem que Ronaldinho e Robinho não tenham excelente técnica. A técnica é a execução dos fundamentos básicos para o jogador de uma posição. Existe técnica sem arte, mas não existe arte sem técnica.

Por mais que o futebol se torne pragmático e programado, ele nunca estará livre do imponderável. Esse fator é determinante no resultado das partidas entre dois times do mesmo nível. O imponderável não tem nada a ver com o mistério e com o estranho. É a presença marcante e frequente de fatos comuns, que não sabemos onde e quando vão acontecer. O imponderável não torce nem é justo. Acontece.

A rotina, os rituais, as repetições e os esquemas táticos dos treinadores são tentativas sem êxito de controlar as sombras do imponderável, do que não tem regras nem nunca terá, como disse a belíssima música de Chico Buarque.

O imponderável é também determinante em nossas vidas. Temos a ilusão de que podemos programar e racionalizar tudo e, de repente, somos surpreendidos pelo imponderável. “A vida dá muitas voltas; a vida nem é da gente” (João Guimarães Rosa).

Existe, progressivamente, uma grande mudança na maneira de se ver o futebol. Por causa de grandes interesses econômicos, da violência e do desconforto dos estádios brasileiros, o futebol está sendo transportado para as salas de televisão. A análise dos árbitros, jogadores e esquemas táticos é feita muito mais pelo olhar da tv. Os editores, nas salas frias, repletas de computadores e de tira-teimas, são hoje mais importantes que os narradores e comentaristas. É o futebol virtual.

Apesar do desenvolvimento científico, o trabalho psicológico no futebol ainda não é bem-aceito. Isso ocorre por vários motivos. Existe um machismo no futebol. Os homens se acham poderosos, capazes de controlar suas emoções. Dirigentes, treinadores, membros da comissão técnica (até os médicos) são mal informados sobre o assunto. Acham que o trabalho dos psicólogos demora e/ou não dá resultados. Preferem as palestras óbvias e repetidas de motivação, de autoajuda, feitas principalmente antes dos grandes jogos.

No mundo do futebol, pragmático, operatório e utilitário, as emoções dos atletas são pouco valorizadas. Acham que o jogador é feito somente por músculos, ossos, tendões, cartilagens e outras estruturas anatômicas.

Muitos jovens, de grande talento, não se tornam craques porque não sabem conviver com as dificuldades, com as emoções, com o sucesso, com o fracasso, com a glória, com a fama e com o dinheiro. Muitos se perdem no meio do caminho. No meio do caminho, existe a vida.

Assim como em qualquer atividade, há atletas com as mais diversas características psicológicas. O mais comum é o atleta ter comportamentos contraditórios. A alma tem muitos mistérios.

Atletas introspectivos, tímidos e calados podem ser desinibidos dentro de campo. Já outros, brincalhões e falastrões, morrem de medo diante da responsabilidade. Existem os que crescem na adversidade. São os ambiciosos, perfeccionistas e determinados. Isso é fundamental para ser um craque. Outros, com baixa autoestima, se inibem quando são vaiados e criticados.

Há os que brilham somente se forem os craques do time. Necessitam ser mimados e elogiados todos os dias. Ao lado de outros craques, ficam retraídos. Existem também os que não querem ser destaque. São pouco ambiciosos. Preferem ser coadjuvantes. É mais fácil. São os obedientes e cumpridores dos esquemas táticos. São os mais comuns. Os técnicos adoram esses atletas.

Existem ainda os deslumbrados, narcisistas, sem autocrítica, que se acham melhores que são. Sentem-se sempre perseguidos pela imprensa, torcedores e técnicos.

O escritor e filósofo Alberto Camus, que foi goleiro, falou que aprendeu mais sobre os valores éticos e humanos no futebol que no restante de sua vida. Muitos dizem que o esporte humaniza e socializa as pessoas. Falam ainda que um jovem, ao praticar o esporte, esquece e sublima outros desejos que podem prejudicar e até destruir sua vida.

Tudo isso é verdade, mas nem sempre é assim, principalmente no esporte de alto rendimento, individual ou coletivo. Se as pessoas comuns, no cotidiano, não conseguem controlar e reprimir suas desmedidas ambições, agressividades e impulsos destrutivos, mesmo com tempo de pensar e assumir os riscos, imagine um atleta, na emoção da disputa de um título que vai lhe render muito dinheiro, fama e glória. Perder é morrer, já disse um campeão.

Se não houvesse exames antidoping de rotina, o número de atletas dopados seria muito maior. Mesmo correndo grandes riscos de serem flagrados, muitos não resistem.

Fora de campo, é a mesma coisa. Dirigentes costumam se utilizar de todas as estratégias, legais e ilegais, para seus clubes serem campeões. Isso representa prestígio e muito dinheiro. Treinadores, mesmo quando não têm consciência de suas atitudes e/ou não são explícitos, muitas vezes estimulam a violência e os valores antiéticos, com instruções do tipo: “Temos de ganhar de qualquer jeito”. É a lei do mais esperto.

O esporte de alto rendimento, diferentemente do esporte que se pratica como lazer, não costuma ser um bom lugar para aprender e incorporar os valores éticos e morais. Obviamente, e felizmente, nem sempre é assim. Muitos jogadores, técnicos e dirigentes procuram fazer um jogo limpo. Há muitos profissionais conscientes e corretos.

Ser um bom profissional não é apenas cumprir obrigações e defender seus direitos. Para um atleta brilhar intensamente, ele precisa criar laços afetivos com o clube, com os torcedores e com os companheiros. No futebol atual, como é cada vez mais curto o tempo de um atleta em um clube, essa proximidade é cada vez menor.

O esporte de alto rendimento, principalmente o futebol, se tornou um grande negócio. Segundo vários estudos, é uma das maneiras mais comuns de se “lavar” dinheiro. Cada vez mais, milionários compram clubes para ganhar e esconder dinheiro, e também para se divertir.

Os clubes, por preguiça, incompetência e outros interesses, não fazem uma transação sem um intermediário. É comum o mesmo empresário gerenciar as carreiras de um técnico e de um jogador de um mesmo clube. Isso é, no mínimo, uma pressão subliminar para o técnico escalar o jogador. Nem todos são honestos.

É também cada vez mais frequente um empresário ser parceiro de vários clubes que disputam a mesma competição. Quando um fica fora do título, corre-se o risco de ele não fazer grandes esforços para vencer o adversário que é gerenciado pelo mesmo empresário.

Como diz uma velhinha em uma propaganda comercial,“onde é que isso vai parar?”.

Muitas pessoas já disseram que o futebol é a verdadeira linguagem universal do mundo, uma metáfora do comportamento e da dualidade humana. Os jogadores estão sempre divididos entre o desejo individual de ser o herói, ter fama e muito dinheiro, e o desejo de participar mais do jogo coletivo e reprimir suas desmedidas ambições.

Como na vida, há geralmente uma conciliação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, entre a ambição e o altruísmo. Além disso, os jogadores mais conscientes sabem que, para um atleta brilhar individualmente, ele precisa do conjunto. Nem os grandes craques fogem dessa realidade.

Há ainda o conflito entre ganhar de qualquer jeito e os valores éticos, legais e morais. O resultado é novamente a conciliação, seguida muitas vezes de reparação, pelo sentimento de culpa, real ou imaginário.

Os atletas e treinadores estão quase sempre divididos entre a ousadia e a segurança. Querem arriscar, procurar mais o gol e, ao mesmo tempo, sabem que precisam correr menos riscos. Assim é também na vida.

O sonho de todos os treinadores é ter uma equipe equilibrada entre a defesa e o ataque. Como os atletas são imperfeitos e instáveis emocionalmente, como todos os humanos, o perfeito equilíbrio nunca será alcançado. O equilíbrio é importante, em qualquer atividade, mas, quando sua busca é obsessiva, doentia, retira a paixão, o prazer e a beleza das coisas.

Existe um lugar-comum que afirma que esporte é cultura. Não é o que vejo na prática, na maioria das vezes. Pelo contrário, o esporte é visto com preconceito por muitos intelectuais, como uma atividade menor, quase que somente física e corporal, com pouca participação do intelecto e da razão.

A linguagem corporal está muito mais próxima da emoção e do inconsciente. Isso é tão importante quanto a linguagem consciente e racional. O corpo fala primeiro. O corpo não mente. “O corpo é a sombra da alma” (Clarice Lispector).

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