(...)
"Dias depois, quando os comunistas começaram a executar sumariamente todos os que tinham qualquer relação com o regime de Daoud Khan; quando começaram a circular pela cidade boatos que mencionavam olhos arrancados e órgãos genitais eletrocutados na prisão de Pol-e-Charkhi, Mariam ouviu falar do massacre ocorrido no Palácio. Daoud Khan estava morto. Antes, porem, os rebeldes comunistas haviam matado cerca de vinte membros de sua família, inclusive mulheres e crianças. Dizia-se que ele tinha tirado a própria vida, ou que tinha levado um tiro na cabeça no auge do confronto. Dizia-se também que ele tinha sido deixado para o fim e obrigado a assistir ao massacre de sua família, antes de ser fuzilado.
Rashid aumentou o volume do rádio e aproximou o ouvido.
"Foi criado um conselho revolucionário das Forças Armadas, e nosso watan será conhecido como República Democrática do Afeganistão", declarou Abdul Qader. "A era da aristocracia, do nepotismo e da desigualdade está encerrada, meus caros hamwatans. Pusemos fim a décadas de tirania. O poder está agora nas mãos das massas e daqueles que amam a liberdade. Tem início um novo tempo de glória na história de nosso país. Nasceu um novo Afeganistão. Podem estar certos de que não há o que temer, meus compatriotas afegãos. O novo regime manterá o máximo respeito tanto pelos princípios islâmicos quanto pelos democráticos. É hora de nos alegrarmos e de festejar."
Rashid desligou o rádio.
— Então, isso é bom ou ruim? — indagou Mariam.
— Ao que parece, ruim para os ricos — respondeu Rashid. — Talvez nem
tanto para nós.
Mariam pensou logo em Jalil. Será que os comunistas iam persegui-lo? Será que o prenderiam? Prenderiam os seus filhos? Tomariam seus negócios e suas propriedades?
— Está quente? — perguntou Rashid fitando o arroz.
— Servi direto da panela.
Ele resmungou e pediu que ela lhe passasse o prato.
Mais abaixo, na mesma rua, quando a noite se iluminou com súbitos clarões vermelhos e amarelos, uma Fariba exausta se ergueu apoiada nos cotovelos. Ela tinha o cabelo encharcado de suor e gotículas bordejavam seu lábio superior. Ao seu lado, uma parteira idosa, Wajma, observava o marido e os filhos de Fariba que passavam o recém-nascido de mão em mão. Estavam encantados com o cabelo claro do bebê, suas faces rosadas e franzidas, a boquinha vermelha, e os olhos de um verde-jade se movendo por detrás das pálpebras inchadas. Todos se entreolharam, sorrindo, ao ouvir sua voz pela primeira vez, um grito que, a princípio, mais parecia o miado de um gato e que se transformou num berro forte e saudável. Noor disse que os olhos do bebê pareciam pedras preciosas. Ahmad, que era o mais religioso da família, recitou o azan ao ouvido da irmãzinha e soprou três vezes em seu rosto.
— Laila, não é? — perguntou Hakim, embalando a filha.
— É. Laila— disse Fariba, com um sorriso cansado. — Beleza da Noite. É
perfeito.
Rashid fez um bolinho de arroz com a mão. Botou aquilo na boca, mastigou, mastigou e, depois, com uma careta, cuspiu tudo na sofrah.
— O que houve? — perguntou Mariam, odiando o tom de lamento da
própria voz. Podia sentir sua pulsação se acelerando, sua pele se contraindo.
— O que houve? — repetiu ele, como um miado, imitando-a. — O que
houve e que você fez besteira novamente.
— Mas deixei ferver por mais cinco minutos que o habitual.
— Isso e uma mentira deslavada!
— Juro...
Rashid sacudiu o resto de comida das mãos e afastou o prato, derrubando molho e arroz na sofrah. Mariam o viu se levantar como uma bala, sair da sala, sair da casa batendo a porta.
Ajoelhou-se no chão e tentou catar os grãos de arroz para botá-los de volta no prato, mas suas mãos tremiam tanto que precisou esperar que o tremor melhorasse. O medo lhe apertava o peito. Tentou respirar fundo algumas vezes.
Viu o seu rosto pálido refletido na vidraça e desviou os olhos.
Depois, ouviu a porta da frente se abrindo e Rashid voltando para a sala.
— Levante daí — disse ele. — Levante-se e venha cá.
Então, ele agarrou a sua mão, abriu-a e depositou ali um punhado de
pedrinhas.
— Ponha isso na boca.
— O quê?
— Ponha... isso... na... boca.
— Pare, Rashid. Eu...
Com aquelas mãos vigorosas, ele agarrou o seu rosto. Meteu dois dedos em sua boca, obrigando-a a abri-la, e enfiou ali aquelas pedrinhas duras e frias. Mariam tentou lutar contra aquilo, mas ele continuou a enfiar as pedrinhas em sua boca com o lábio superior erguido num sorriso de desdém.
— Agora, mastigue — disse ele.
Com a boca cheia de pedras e terra, Mariam tentou balbuciar uma súplica.
As lágrimas lhe escorriam pelo canto dos olhos.
— MASTIGUE! — berrou ele, e aquele hálito de cigarro atingiu em cheio o
seu rosto.
E ela mastigou. Lá no fundo de sua boca, alguma coisa estalou.
— Ótimo — disse Rashid. Suas mandíbulas tremiam.— Agora você sabe o gosto do arroz que faz. Agora sabe o que tem me dado nesse casamento. Comida ruim, e nada mais.
E foi embora deixando Mariam cuspindo pedras, sangue e pedaços de dois molares quebrados."
Khaled Hosseini, em "Cidade do Sol" . Capítulo 15 - Parte I
Editora Nova Fronteira - Tradução de: Maria Helena Rouanet
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