"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Sutilezas Literárias # 040 - Khaled Hosseini

(...)
"Dias depois, quando os comunistas começaram a executar sumariamente todos os que tinham qualquer relação com o regime de Daoud Khan; quando começaram a circular pela cidade boatos que mencionavam olhos arrancados e órgãos genitais eletrocutados na prisão de Pol-e-Charkhi, Mariam ouviu falar do massacre ocorrido no Palácio. Daoud Khan estava morto. Antes, porem, os rebeldes comunistas haviam matado cerca de vinte membros de sua família, inclusive mulheres e crianças. Dizia-se que ele tinha tirado a própria vida, ou que tinha levado um tiro na cabeça no auge do confronto. Dizia-se também que ele tinha sido deixado para o fim e obrigado a assistir ao massacre de sua família, antes de ser fuzilado.


Rashid aumentou o volume do rádio e aproximou o ouvido.
"Foi criado um conselho revolucionário das Forças Armadas, e nosso watan será conhecido como República Democrática do Afeganistão", declarou Abdul Qader. "A era da aristocracia, do nepotismo e da desigualdade está encerrada, meus caros hamwatans. Pusemos fim a décadas de tirania. O poder está agora nas mãos das massas e daqueles que amam a liberdade. Tem início um novo tempo de glória na história de nosso país. Nasceu um novo Afeganistão. Podem estar certos de que não há o que temer, meus compatriotas afegãos. O novo regime manterá o máximo respeito tanto pelos princípios islâmicos quanto pelos democráticos. É hora de nos alegrarmos e de festejar."

Rashid desligou o rádio.
— Então, isso é bom ou ruim? — indagou Mariam.

— Ao que parece, ruim para os ricos — respondeu Rashid. — Talvez nem
tanto para nós.

Mariam pensou logo em Jalil. Será que os comunistas iam persegui-lo? Será que o prenderiam? Prenderiam os seus filhos? Tomariam seus negócios e suas propriedades?

— Está quente? — perguntou Rashid fitando o arroz.

— Servi direto da panela.

Ele resmungou e pediu que ela lhe passasse o prato.
Mais abaixo, na mesma rua, quando a noite se iluminou com súbitos clarões vermelhos e amarelos, uma Fariba exausta se ergueu apoiada nos cotovelos. Ela tinha o cabelo encharcado de suor e gotículas bordejavam seu lábio superior. Ao seu lado, uma parteira idosa, Wajma, observava o marido e os filhos de Fariba que passavam o recém-nascido de mão em mão. Estavam encantados com o cabelo claro do bebê, suas faces rosadas e franzidas, a boquinha vermelha, e os olhos de um verde-jade se movendo por detrás das pálpebras inchadas. Todos se entreolharam, sorrindo, ao ouvir sua voz pela primeira vez, um grito que, a princípio, mais parecia o miado de um gato e que se transformou num berro forte e saudável. Noor disse que os olhos do bebê pareciam pedras preciosas. Ahmad, que era o mais religioso da família, recitou o azan ao ouvido da irmãzinha e soprou três vezes em seu rosto.

— Laila, não é? — perguntou Hakim, embalando a filha.

— É. Laila— disse Fariba, com um sorriso cansado. — Beleza da Noite. É
perfeito.

Rashid fez um bolinho de arroz com a mão. Botou aquilo na boca, mastigou, mastigou e, depois, com uma careta, cuspiu tudo na sofrah.

— O que houve? — perguntou Mariam, odiando o tom de lamento da
própria voz. Podia sentir sua pulsação se acelerando, sua pele se contraindo.

— O que houve? — repetiu ele, como um miado, imitando-a. — O que
houve e que você fez besteira novamente.

— Mas deixei ferver por mais cinco minutos que o habitual.

— Isso e uma mentira deslavada!

— Juro...

Rashid sacudiu o resto de comida das mãos e afastou o prato, derrubando molho e arroz na sofrah. Mariam o viu se levantar como uma bala, sair da sala, sair da casa batendo a porta.

Ajoelhou-se no chão e tentou catar os grãos de arroz para botá-los de volta no prato, mas suas mãos tremiam tanto que precisou esperar que o tremor melhorasse. O medo lhe apertava o peito. Tentou respirar fundo algumas vezes.
Viu o seu rosto pálido refletido na vidraça e desviou os olhos.
Depois, ouviu a porta da frente se abrindo e Rashid voltando para a sala.

— Levante daí — disse ele. — Levante-se e venha cá.

Então, ele agarrou a sua mão, abriu-a e depositou ali um punhado de
pedrinhas.

— Ponha isso na boca.

— O quê?

— Ponha... isso... na... boca.

— Pare, Rashid. Eu...

Com aquelas mãos vigorosas, ele agarrou o seu rosto. Meteu dois dedos em sua boca, obrigando-a a abri-la, e enfiou ali aquelas pedrinhas duras e frias. Mariam tentou lutar contra aquilo, mas ele continuou a enfiar as pedrinhas em sua boca com o lábio superior erguido num sorriso de desdém.

— Agora, mastigue — disse ele.

Com a boca cheia de pedras e terra, Mariam tentou balbuciar uma súplica.
As lágrimas lhe escorriam pelo canto dos olhos.

— MASTIGUE! — berrou ele, e aquele hálito de cigarro atingiu em cheio o
seu rosto.

E ela mastigou. Lá no fundo de sua boca, alguma coisa estalou.

— Ótimo — disse Rashid. Suas mandíbulas tremiam.— Agora você sabe o gosto do arroz que faz. Agora sabe o que tem me dado nesse casamento. Comida ruim, e nada mais.

E foi embora deixando Mariam cuspindo pedras, sangue e pedaços de dois molares quebrados."

Khaled Hosseini, em "Cidade do Sol" . Capítulo 15 - Parte I 
 Editora Nova Fronteira - Tradução de: Maria Helena Rouanet 

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