"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Poesia a Qualquer Hora (161) - José Chagas

Cigarra e Formiga 
( antifábula )

Fala-se mal da cigarra, 
fala-se bem da formiga, 
pois que uma canta e farra 
e outra em labor se fatiga.

Diz-se que uma só gasta, 
e a outra guarda o que tem, 
e em sua riqueza vasta 
não quer ajudar ninguém. 

É uma história que se narra, 
sem graça, de tão antiga, 
e nela nem a cigarra 
se envolve, nem a formiga.


Ambas nada têm com isso 
que seu La Fontaine inventa, 
com um fundo moral cediço 
de uma fábula odienta. 

Cada qual cumpre a missão 
que lhes deu a natureza; 
nada têm com o que dirão 
contra a cigarra indefesa.

Querem por força lançar 
cigarra contra formiga, 
a fingir-se um falso ar 
de tradição inimiga.

Cigarra e formiga juntas 
vivem, dando o que falar, 
mas não respondem perguntas 
de um mundo raso e vulgar.

Elas estão muito acima 
do que nossa vida engana, 
e nenhuma se aproxima 
de nossa atitude humana.

Não é com cigarra alguma 
nem com formiga qualquer 
que alguém, a seu modo, assuma 
a tolice que quiser.

Sem nunca cometer falha, 
sem descuidar-se um instante 
é que a formiga trabalha 
para que a cigarra cante.

O canto é tão necessário 
quanto o labor. E entre os dois 
não se sabe, em seu fadário, 
quem vem antes ou depois.

O homem, com braço e garganta, 
suaviza a sua batalha, 
e trabalha, enquanto canta 
e canta, enquanto trabalha.

O canto é irmão do labor 
e, irmãos, se dão por completos, 
jamais iriam propor 
uma disputa de insetos.

Deixe-se a cigarra em paz, 
deixe-se em paz a formiga, 
e seja o homem capaz 
de amar trabalho e cantiga.

Não há povo que não cante 
nem povo que não trabalhe, 
e a poesia é reinante, 
no todo em cada detalhe.

José Chagas

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