"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Sutilezas Literárias # 033 - Gustave Flaubert

(...) "Mas, meus senhores, prosseguia o conselheiro, se afastar da minha memória esses quadros sombrios e voltar os olhos para a situação actual da nossa bela pátria, que vejo eu? Por todo o lado florescem o comércio e as artes; por toda a parte, novas vias de comunicação, como outras tantas novas artérias no corpo do Estado, nele estabelecem novas relações; os nossos grandes centros industriais retomaram a sua actividade; a religião, mais fortalecida, sorri a todos os corações; os nossos portos estão cheios, a confiança renasce e, enfim, a França respira!..., - Aliás - acrescentou Rodolphe -, do ponto de vista das pessoas, quem sabe se não terão razão?
- Mas como? - disse ela.
- Então não sabe - insistiu ele - que há almas continuamente atormentadas? Têm alternadamente necessidade de sonho e de acção, das paixões mais puras, dos gozos mais violentos, e por isso se lançam em toda a espécie de fantasias, de loucuras.
Ela então fitou-o como se olha para um viajante que andou por terras extraordinárias e prosseguiu:
- Nós, pobres mulheres, nem sequer temos essa distração!
- Triste distração, porque nela não se encontra a felicidade.
- E alguma vez ela se encontra? - perguntou Emma.
- Sim, um dia encontra-se - respondeu ele.
"E foi isso que vós compreendestes", dizia o conselheiro.
"Vós, agricultores e trabalhadores dos campos; vós, pacíficos pioneiros de toda uma obra de civilização! Vós, homens de progresso e de moralidade! Vós compreendestes, dizia eu, que as tempestades políticas são ainda mais temíveis, na realidade, do que as desordens da atmosfera..."
- Encontra-se um dia - repetiu Rodolphe -, um dia, de repente e quando já não se tem esperança. Então abrem-se os horizontes, é como que uma voz que grita: "Aí está ela!"
Sente-se necessidade de fazer àquela pessoa a confidência da nossa vida, dar-lhe tudo, sacrificar-Lhe tudo! Não há que dar explicações, tudo se adivinha. Já nos conhecíamos nos nossos sonhos. (E olhava para ela.)
Enfim, está ali o tesouro que tanto procurávamos, ali, diante de nós; ele brilha, resplandece. No entanto, ainda duvidamos, não temos coragem para acreditar; ficamos deslumbrados, como se tivéssemos saído da escuridão para a plena luz.
E, a rematar estas palavras, Rodolphe acrescentou a pantomina à sua frase. Passou a mão pelo rosto, como quem se sente atordoado; depois deixou-a cair sobre a de Emma. Esta retirou a sua. Mas o conselheiro continuava a leitura do discurso:
"E quem poderia admirar-se de que assim acontecesse, meus senhores? Unicamente quem fosse suficientemente cego, suficientemente mergulhado (não receio dizê-lo), suficientemente mergulhado nos preconceitos de uma outra época, para desconhecer ainda o espírito das populações agrícolas. Onde, efetivamente, se poderá encontrar mais patriotismo do que nos campos, mais dedicação à causa pública, numa palavra, mais inteligência? E não me quero referir, meus senhores, àquela inteligência superficial, vão ornamento dos espíritos ociosos, mas antes a essa inteligência profunda e moderada que se dedica, acima de tudo, a alcançar objetivos úteis, contribuindo assim para o bem de cada indivíduo, para o melhoramento comum e para a proteção dos Estados, fruto do respeito pelas leis e da prática dos deveres..." (...)

Gustave Flaubert, em "Madame Bovary" (Segunda Parte - VIII) 
Tradução: Fernanda Ferreira Graça
Penguin Classics

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